MESA: DEPRESSÃO NA CONTEMPORANEIDADE
PARALISIA DO TEMPO E VAZIO NO ENVELHECIMENTO
Maíra Humberto Peixeiro
mpeixeiro@hotmail.com
GER-AÇÕES- pesquisas e ações em gerontologia.
www.geracoes.org.brRESUMO: Diante da proximidade da morte, deflagrada a partir da percepção de um corpo que envelhece, pode ter início um processo de luto pela própria vida e por todas as perdas que se acumulam neste período. Este processo tem como efeito um fundo depressivo em que o sujeito se mantém, sendo que aos poucos pode encontrar objetos para redirecionar seus investimentos afetivos. Muitas vezes, este processo não se instaura e o que ocorre é a tentativa de recusar a passagem do tempo que tem como efeito a permanência do sujeito em um estado de suspensão. Este estado de "ausência" produz a anestesia do desejo e a impossibilidade de realizar investimentos. Neste trabalho busca-se compreender os fundamentos deste último acontecimento psíquico a partir da obra freudiana e de autores pós-freudianos, discorrendo-se sobre o tempo em psicanálise.
PALAVRAS-CHAVE: depressão; tempo; psicanálise
No processo de estudos e supervisão sobre a depressão percorrido pelo grupo que hoje forma esta mesa, nos deparamos com a questão do tempo. Tempo parado, tempo que não passa, tempo sem história, tempo vazio. Qual é o tempo da depressão?
Em meio às discussões, imagens tais como os residentes de ILPIs sentados em sofás, em frente à televisão, em corredores, em quartos, esperando o tempo passar, ou melhor, não esperando nada , nos inquietaram. Seres aparentemente fora do tempo mirando o vazio. Que perigo tão intenso os apavorou, fazendo com que se refugiassem neste intenso nada ? Não resolvem fechar os olhos, mas tampouco os abrem. O que os afugentou?
Joel Birman (1995) anuncia uma psicopatologia da velhice, fundada na impossibilidade da temporalização. O velhos, impedidos de construírem um sentido para o seu presente, ressignificando seu passado, não poderiam projetar um futuro. A ausência de perspectiva de futuro, a impossibilidade de projetar-se neste futuro, de antever sua imagem em um tempo que ainda está por vir, esvaziaria o presente, deixando o sujeito submetido a um passado que ele não pode mudar. A proximidade da morte, neste contexto, se apresentaria de maneira a extirpar do sujeito qualquer possibilidade de redimensionamento da vida que resta a partir da nova constatação, a morte se apresenta em sua face hedionda, terrível. O ser engessado nesta condição passaria a apresentar o que o autor chama de estilos clínicos para confrontar a impossibilidade de temporalização. Estes estilos são: a mania, uma tentativa de burlar, através de uma imagem caricata, exagerada de jovialidade, a presença da morte; a paranóia, tentativa de responsabilizar o outro, o mundo, por ter retirado o que era seu de direito, o que ele merecia; e por fim, a depressão. A depressão teria um caráter melancólico, pois somente as faltas e as perdas ocupariam a cena, já que o trabalho de luto não poderia ser realizado. O trabalho do luto é um processo que se inscreve no tempo, pressupõe a retirada do investimento, um a um, dos traços do objeto perdido, transformando, como descreve Delia Goldfarb (2004), a dor da perda em lembrança. Este trabalho só tem sentido se existe um futuro aberto para novos investimentos pulsionais. Quando a cultura não oferece espaço para estes investimentos, o sujeito se volta para o passado, para suas faltas e perdas e lá permanece. O tempo pára.
Mas de que tempo estamos falando? O tempo para a psicanálise tem características próprias. Em seu texto " Uma nota sobre o bloco mágico" (1925), Freud toma este objeto, o bloco mágico, que conhecemos como lousa mágica, objeto que consiste em uma superfície de cera coberta por uma fina película plástica, onde ao pressionar um objeto com ponta, tal como uma caneta sem tinta, escrevemos, desenhamos, inscrevemos um traço que permanece visível até que a película plástica seja levantada. Freud compara a película ao pólo perceptivo do aparelho e a cera ao sistema pré-consciente e inconsciente, onde diversos traços, apesar de não estarem presentes ao pólo de percepção, permanecem em um infinito campo de inscrição, onde nada se perde. Cada traço proporcionado pelos acontecimentos da vida está lá colocado. Tomando esta idéia, temos que o psiquismo é um emaranhado de marcas, traços, inscrições, estabelecidos fundamentalmente a partir da nossa relação com o mundo, com os objetos em que investimos nossa libido: pessoas, lugares, trabalhos, projetos, ideologias, entre outros. Estas inscrições só são ativadas quando associadas entre si, só ganham corpo quando articuladas no campo simbólico, no campo da linguagem, a outras representações. Sylvie Le Poulichet (2006), autora francesa que se debruçou sobre a questão do tempo em psicanálise, lembra da idéia freudiana do après coup, ou depois do golpe, descrevendo o que chama de tempo identificante. Ela define este tempo como:
" ...o encontro por sobreposição de traços de um acontecimento passado e de um acontecimento presente e seus efeitos no corpo. É necessário um acontecimento novo para que o acontecimento antigo ressoe e aceda à presença. Ele já estava lá, mas no entanto ele chega de repente. É um já lá" que toma corpo somente depois do golpe (après coup)" tradução livre (p. 23)
Este é o fundamento da teoria do trauma freudiano, que propõe que um acontecimento só se torna traumático em um segundo momento, après coup, quando reativa um acontecimento anterior, que quando ocorrido, devido à imaturidade sexual da criança, não tinha sentido. Quando o sentido sexual é atribuído à vivência, aí sim, existe um excesso pulsional que não pode ser metabolizado, constituindo o trauma.
O que é essencial nesta formulação para o tema que pretendo desenvolver nesta apresentação, é que os traços só ganham presença, quando se identificam entre si, no sentido não de se assemelharem, ou de se tornarem como o outro, mas no sentido de se atribuírem reciprocamente identidade. Neste momento ocorre o que a autora descreve como uma explosão de presença, tal como um raio, e tem lugar uma espécie de abolição do tempo, ao mesmo tempo em que ocorre uma afirmação potente do mesmo. É preciso que haja uma fissura na trama do tempo para que se presentifique o acontecimento. Ela acrescenta: "Não se trata mais de reencontrar a memória, mas de ser encontrado por ela, lá onde não esperamos." (p.23)
Sermos encontrados pela memória traz a idéia de uma história que está lá apesar de nós, e a de traços de memória que buscam caminhos para se fazerem presentes. O fenômeno do aprés coup remete à potencialização de uma vivência atual a partir da capacidade que ela tem para atrair uma lembrança. A vivência atual ganha novas cores ao mesmo tempo em que a memória atraída se presentifica. Podemos pensar que este é o processo de subjetivação da própria história, história que vai sendo construída por estes traços de vivências passadas e presentes que ao se encontrarem abrem campo para projetos futuros.
A reminiscência no envelhecimento, tal como Delia Goldfarb (1998) a concebe, é o discurso da memória, discurso que se repete na tentativa de afirmar uma história, história que singulariza o sujeito e que o assegura de sua própria identidade. "Eu sou aquele de quem vos falo, apesar de não parecer, já que a imagem que tinha de mim mesmo se perdeu em algum espelho do passado". Além disto, o exercício da reminiscência, esta repetição da própria história, é uma tentativa de elaborar uma perda, mesmo que em perspectiva, trabalho de luto pela vida que está mais próxima do fim.
A experiência clínica nos mostra que os elementos que insistem em retornar no discurso reminiscente (que não cessa), são aqueles que de alguma forma não conseguiram se integrar ao circuito associativo e permaneceram fora do jogo simbólico, são as memórias que não encontraram caminho para o presente, perdas não elaboradas, lutos não trabalhados. Um casamento de 30 anos em que dor e sofrimento foram protagonistas durante a maior parte do tempo, um filho que saiu de casa sem se despedir, uma mãe que se ausentou muito antes de morrer, um desentendimento mudo com o pai, entre outros. Como se para poder morrer, no sentido de se saber mais próximo do fim, fosse necessário se ressubjetivar, integrando as lacunas, construindo sentidos, retificando o passado e reconstruindo um presente para o futuro. A capacidade de fantasiar, como tentativa de construir sentidos imaginários, mesmo que provisórios para as vivências é parte essencial deste processo.
Mas este processo de apoderamento da memória exercício só acontece se alguém se dispõe a escutar o passado que se reencontra com o presente como, por exemplo, na cena analítica. Ou quando este passado ganha outros significados, tomando outras formas, na medida em que é compartilhado com a família, amigos, netos, grupos. Em ambos os casos o exercício de historização está sendo realizado e o trabalho de luto pela própria vida, trabalho que é sempre parcial, realizado homeopaticamente e onde não há desfecho final, permanece ocorrendo. O luto, segundo Freud, trabalho pulsional de desinvestimento dos objetos perdidos e reinvestimento em novos objetos vai sendo realizado. A depressividade que caracteriza este trabalho acompanha o sujeito neste processo em um movimento de recolhimento para a recriação destes objetos de investimento, recolhimento necessário que se alterna com aberturas para o mundo. O movimento de fechar -se e abrir-se não deixa dúvidas sobre a passagem do tempo, enquanto há movimento, o tempo não deixa de passar.
Quando não existe campo de escuta, quando não existe espaço para compartilhar estes traços de memória que buscam lugar no presente, um passado engessado, quase delirante acaba por invadir o sujeito. A repetição que não produz elaboração faz o sujeito submergir neste mar recordações sem lastro na realidade compartilhada do momento atual. O fantasiar sozinho, sempre remetido ao si mesmo, aliena o sujeito, o afasta, o exclui. Chega-se ao ponto em que a própria atividade da fantasia sucumbe, a palavra ganha estatuto de coisa, perde seu caráter simbólico, repete-se apenas por repetir, não se quer dizer nada. É então que a memória perde a capacidade de achar caminhos que a presentifiquem, o fio do passado e do presente é rompido, o subjetivar-se constante se interrompe. Estamos frente ao vazio.
O vazio remete ao não movimento, à inexistência de objeto, ao trabalho que cessa, à paralisia do tempo. É a morte que se apresenta antes do tempo, em sua forma psíquica. Este vazio absoluto é dificilmente encontrado na clínica, já que mesmo nos estados demenciais mais avançados é difícil não apostar em alguma vida psíquica, pois uma palavra plena, um gesto endereçado, um olhar vivo ainda podem nos surpreender e nos certificar de que o sujeito está ali. De qualquer forma, podemos falar em um esvaziamento do sujeito, sujeito que desiste de realizar os trabalhos de luto, que desiste de tentar recolocar em circulação os elementos fora do jogo associativo, que desiste de sua história. Enfim, um sujeito que parece não desejar mais estar presente, nem de corpo nem de alma, ao menos frente às possibilidades que a vida lhe apresenta.
Para Lacan (Peres, 2003) o desejo se funda na falta. Neste sentido ele atribui ao luto um lugar essencial na constituição do sujeito. A relação com o objeto nunca satisfaz plenamente, a ilusão de satisfação plena, aquela de uma suposta primeira experiência de prazer do bebê com o seio, a primeira mamada, é mítica. Supõe-se um objeto que proporcionou prazer pleno e é atrás deste suposto objeto que o sujeito vai estar durante toda a sua vida, deslizando de objeto em objeto, em busca daquele que o satisfará. Este é o movimento do desejo, e é justamente esta diferença, esta defasagem, este descompasso entre o que é almejado e o que é encontrado que vai produzir o movimento do sujeito, sua busca, marcando o tempo no desejo. É preciso esperar, a promessa do encontro com este objeto cria a perspectiva do futuro, a referência perceptiva do passado mítico busca identificações no presente, articulando passado, presente e futuro. É possível perder o objeto investido e, apesar da dor, realizar o trabalho do luto, supondo a existência de outros objetos passíveis de investimento e satisfação pulsional. As idas e vindas do objeto, investimento e desinvestimento, ganhos e perdas colocados em uma dimensão temporal, vão permitir a simbolização. É preciso que o objeto se ausente para ser simbolizado, desde que ele tenha permanecido o tempo necessário para ser reconhecido e investido.
Lembro-me de uma cena da clínica em que um paciente deprimido me disse que sua vida se assemelhava ao braço de um violão sem as marcações de casas, sem a diferença da distância que localizam os acordes. Tocasse onde tocasse, o mesmo som era emitido, em uma repetição terrível, pois infinita.
Que campo do desejo se abre para um sujeito que sempre que apóia seus dedos no braço do violão, onde quer que seja, o mesmo som é emitido. Retomando as cenas de instituições de longa permanência, muitas das quais se autodenominam "Casas de repouso", que diferenças, que descompassos podem surgir em ambientes em que não são priorizadas as singularidades dos que ali se encontram, em que as atividades oferecidas, são compulsórias, determinadas de maneira a facilitar a rotina dos cuidadores que lá trabalham, e não a priorizar as necessidades, e indo além, os desejos de cada residente. Será que ele quer assistir televisão, ou participar da jardinagem? Será que ela quer se deitar, ou se arrumar? Será que ele quer sair, ou ficar? Será que eles querem repousar, ou ainda viver? O descanso compulsório antes da morte, a antecipa. Quando só o que resta é esperar por ela, é como já se estivesse morto. A inexistência de conselhos gestores, assembléias, em que os idosos possam opinar sobre o funcionamento institucional, reivindicarem seus desejos, criarem campo para seu futuro, já que sua vida tem lugar a partir de então neste ambiente, revela em que ponto estamos com relação ao lugar ocupado pela velhice na cultura. E neste sentido este cenário não se restringe somente às instituições.
Na nossa cultura atual, podemos considerar que grande parte das saídas encontradas para alojar a velhice a clivam, a idealizando ou a mortificando, em ambos os casos, anestesiando a singularidade. O velho é o resto indesejável, imagem de um corpo que se deteriora e se aproxima da morte, futuro do qual não queremos ter notícia. A velhice só é tolerável quando higienizada, em uma assepsia que a torna jovem, ativa, agradável de ver, ou a esconde em instituições onde o sujeito desaparece e vão com ele os perigos de uma identificação com estes aspectos abomináveis da velhice. Este processo de dessubjetivação coloca o velho em um lugar de passividade, submetido ao outro, tal como uma criança, o que antecipa um estado demencial.
Nessa condição, que objetos o mundo oferece ao idoso para serem investidos? Que trabalho do tempo é possível realizar? Para que atravessar processos de luto, se não restam objetos para novos investimentos? Ou ainda, como dar sentido ao luto, se na velhice, muitas vezes, as perdas não são consideradas, pois elas ficam no lugar de um destino, e não de uma possibilidade? Na medida em que as perdas não são reconhecidas em sua dimensão de intensa dor, já que é como se parte do eu também tivesse sido perdido, não há espaço para um trabalho do luto. O sujeito fica então lançado à solidão do não reconhecimento de sua dor, mesmo sentindo-se dilacerado. Entra então em um tempo que pára, em que o trabalho de historização do eu, de subjetivação, se paralisa. Por impossibilidade de reconhecimento simbólico, as perdas ficam de fora do jogo simbólico. Algo que é sentido pelo sujeito, permanece sem sentido para o mundo, e ele entra em um estado de suspensão.
A depressão, epidemia dos nossos tempos, faz parte de uma nova configuração subjetiva que se apóia na impossibilidade de construir um sentido para a vida, na sensação de ser incapaz de enfrentar a luta pela existência, tal como aponta a psicanalista, Urania Tourinho Peres (2003). O sentido, aquele que é construído e desconstruído em um movimento constante durante toda a vida e que nos permite vislumbrar, mesmo que de maneira transitória, um objetivo no futuro, nos impulsiona. Na velhice o horizonte de futuro se estreita inevitavelmente e as perdas são numerosas. Acreditar-se capaz de lutar pela existência, por continuar a construir sentido para a vida pode ser tarefa árdua.
Os aspectos culturais e a constituição de cada sujeito concorrem para determinar a maneira como cada um vai atravessar, na velhice, este momento de confrontação das perdas, entre as quais, em perspectiva, a da própria vida. Por um lado, pode-se entrar em um estado de depressividade, onde o trabalho dos lutos vai sendo realizado e, apesar da dor, o sujeito permanece presente, realizando seu constante subjetivar-se. A articulação entre o passado, o presente e o futuro se mantêm sustentada, o tempo não pára e o vazio, não se instala. O movimento de historização de si tem continuidade. Por outro lado, pode-se deprimir de maneira a adentrar o vazio simbólico, em que o tempo pára, o fio que articula passado, presente e futuro se rompe e o sujeito parece ficar suspenso de si mesmo. Não se confronta a perda, ela é recusada, colocada de fora. Sabe-se que perdeu e não se sabe ao mesmo tempo. O psiquismo fica rompido, dois lados que não se comunicam e o eu, em meio a tamanho dilaceramento, se ausenta; passa a olhar o vazio e se refugia no não tempo. A memória, assim, não pode mais buscar caminho para o presente; ela não encontra mais o sujeito que, deste modo, fica condenado, como os zumbis, a viver uma eternidade de cores pálidas, entregue a uma quase morte monotônica e infinita.
BIBLIOGRAFIA
BIRMAN, Joel (1995) " Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade em psicanálise" In: VERAS, R. Terceira idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro. Relume-Dumará, RJ
FREUD, Sigmund (1925) "Uma nota sobre o bloco mágico" In: Obras Completas (1980), Imago, RJ
GOLDFARB, Delia Catullo (1998) Corpo, tempo e envelhecimento. Casa do Psicólogo, SP
_______________________ (2004) Demências. Casa do Psicólogo, SP
LE POULICHET, Sylvie (2006) Louvre du temps en psychanalyse. Petit Bibliotèque Payot, Paris
PERES, Urânia Tourinho (2003) Depressão e Melancolia. Jorge Zahar Editor, RJ