MESA: DEPRESSÃO NA CONTEMPORANEIDADE
A MANIFESTAÇÃO DE EPISÓDIOS DEPRESSIVOS NA VELHICE:
O CORPO, AS IDEIAS HIPOCONDRÍACAS E O DESAMPAROMaria Elvira M. Gotter
Ger-Ações Centro de Pesquisas e Ações em Gerontologia - São Paulo - Brasil
elviragotter@gmail.comO presente texto é uma reflexão procedente da observação de pacientes idosos na clínica da depressão. Partimos do pressuposto de que, perante a impossibilidade de vivenciar as perdas, o idoso sucumbiria a um episodio depressivo. O estado deprimido se manifesta na corporalidade, através de uma extremada fixidez que resulta num corpo impedido de agir. Como se a fixidez do vazio existencial se exprimisse no corpo e provocasse uma sensação de desmoronamento. Os idosos se queixam, na maioria das vezes, de um mal-estar físico que não conseguem explicar ou se mostram preocupados por acreditarem que podem estar com uma doença fatal, o que em ambos os casos, pode provocar um estado de ansiedade difusa. O desamparo é vivenciado através do sentimento de solidão, da ausência de amor e da falta de proteção do outro. Por meio de vinhetas clínicas e de um referencial teórico psicanalítico, serão analisados o sentimento de desamparo e as ideias hipocondríacas articulados à depressão e seus efeitos na subjetividade.
PALAVRAS CHAVES: depressão, ideias hipocondríacas, desamparo.
Esta reflexão é fruto da observação e da escuta diferenciada na clínica de pacientes idosos que demandam atendimento psicológico por questões relacionadas: à perda de desejo, perda de ação, desalento, vazio existencial, tristeza, sentimento de solidão, dentre outras. Porém, pude constatar que, não obstante a existência de uma inibição corporal, relacional e psíquica, não todos os pacientes estavam com depressão, mas sim em processo de luto e procuraram a terapia para elaborar situações relacionadas à toma de consciência, por um lado, da entrada na velhice com suas perdas que os confronta à angústia de castração e, por outro lado, da própria finitude que os confronta à angústia de morte.
Freud assinala em Luto e Melancolia (1927), que o luto é um processo psíquico lento e doloroso resultante do desinvestimento de um quantum de energia que era dirigida ao objeto amado: pessoa, pais, liberdade, ideal etc. e no final do processo o eu fica livre de inibições, para investir em novos objetos de desejo. Nesses casos esses idosos estariam elaborando um luto por diversas perdas: por um corpo jovem, objeto narcisicamente investido, pela perda dos papéis sociais, pela perda do trabalho e a difícil entrada na aposentadoria, pela perda de laços afetivos, pela morte de seres queridos, dentre outras. Esses trabalhos de luto se tornam necessários para dar lugar à vivência e aceitação da perda e, desse modo, simbolizar a ausência do objeto perdido. Nesse sentido podemos falar de "depressividade" (Fedida 2002), que é a capacidade do sujeito para entrar em contato consigo mesmo quando acontece a perda e a transformação decorrente dessa experiência.
Porém, algumas vezes, acontece que essa vivência da perda não existe, há uma dificuldade na elaboração do luto, a pessoa se apega à lembrança do objeto perdido e, deste modo, o sujeito sucumbe a um "sério episódio depressivo." Neste sentido podemos falar de um luto patológico em que a libido apresenta dificuldade de desligar-se do objeto causa de satisfação. (Kehl, 2009).
A Sra. Maria (nome fictício) de 64 anos procura atendimento psicológico por depressão decorrente da morte do esposo, acontecida quatro anos atrás, e do desmoronamento familiar que determinou sua saída de casa; ela não consegue elaborar um luto diante dessas perdas. Durante o tempo de atendimento se percebe um desejo constante de voltar à situação anterior, onde os objetos perdidos -tanto o esposo, como a família e a própria casa- lhe outorgavam uma posição que lhe garantia uma identidade: a de mulher amada, dona de casa e mãe devotada, que lhe proporcionava um sentimento de permanência, de unidade e continuidade. A paciente não consegue colocar outros objetos no circuito das satisfações pulsionais; a morte do esposo e o desmoronamento familiar lhe provocaram um câmbio radical de posição: passou de uma atitude ativa para uma atitude passiva que se manifesta pela falta de desejo, pelo vazio existencial, a sensação de desamparo, a carência de simbolização e sobre tudo o sentimento de minus valia: "eu já não sirvo para fazer nada eu estou impossibilitada de realizar qualquer atividade, eu me sinto mal porque só levo problemas para os outros" Tudo isto determina, para ela, um lugar sem sentido, em fim, uma posição que caracteriza um episódio depressivo. Ela não consegue sonhar, nem metaforizar; é como se a vida não tivesse mais significado e a levasse a uma posição de passividade. Dessa forma, o sujeito é confrontado com sua impotência perante a vida e, a cada perda, a angústia de castração se renova. Pareceria não existir uma expectativa de investir em novos objetos. Acontece uma inércia que dificulta a mudança e leva à pessoa ao vazio existencial, que se exprime na clínica como um grande vazio de significações e uma falta de metáforas que impede a emergência de novos sentidos. Segundo Fedida (2002), "A depressão se apresenta como um impedimento dos movimentos da vida psíquica e da vida externa, uma abolição de qualquer devaneio ou desejo. Uma violência do vazio parece dominar o pensamento, a ação e a linguagem".
O sujeito depressivo se queixa de incapacidade radical (Chemama 2007). Os pacientes que atravessam um episódio depressivo se queixam de angústia, de vazio, ansiedade, irritabilidade, insônia, inapetência. Na realidade o que eles manifestam é uma inapetência de desejo e, consequentemente, de vida. Um paciente diz que fica sentado na poltrona o dia todo, não sente vontade de sair desse lugar em que deixa a vida passar. Essa imobilidade operaria como uma forma de inibir a passagem do tempo e expressa a dificuldade de se colocar numa posição de sujeito desejante. A estagnação no tempo (Kehl, 2009) se manifesta por meio da carência de lembranças importantes do passado e da falta de fantasias que se projetem na perspectiva de um futuro.
Assim como existe uma estagnação no que diz respeito ao tempo, podemos observar também uma extrema fixidez corporal, o que resulta num corpo impedido de atuar, de agir. A lentidão extremada do depressivo, que se manifesta no corpo, estaria relacionada ao tempo psíquico da depressão, um tempo próprio que parece congelado, estagnado, porém ligado a uma violenta inquietação interna de medo do aniquilamento. A pessoa crê que a perda é total e clama para que os outros assumam alguma atitude perante sua impotência (Chemama 2007). Esse clamor não vem sempre pela palavra, mas também por expressões corporais como, por exemplo, a voz monótona, o rosto sem expressão, o caminhar arrastado, o olhar vazio, a mobilidade diminuída, em suma, uma rigidez corporal total. Um corpo que fala quando as palavras parecem não ter mais sentido. Quando a comunicação verbal com o outro quase não acontece, o corpo aparece como mediador entre a dor de existir e o mundo. Segundo Fedida (2002), "A experiência do estado deprimido poderia caber numa única sensação: aquela quase física, de aniquilamento".
O sujeito que atravessa um episodio depressivo tem uma imagem desvalorizada de si, que está relacionada a sua imagem ideal de si mesmo. Alguns pacientes se queixam da imagem irreconhecível, de velhos decrépitos que lhes é a pontada pelo espelho causando-lhes certa estranheza. Não poucas vezes, são pacientes que dão um grande valor à aparência, à estética e aos valores da juventude. Podemos observar que há uma não-aceitação da imagem de si, eles valorizam a imagem idealizada da juventude em detrimento da imagem irreconhecível, estranha, da velhice que lhes é apontada pelo outro: o espelho. Eles temem essa imagem refletida no espelho com a qual não conseguem se integrar. Nesses pacientes, o sentimento de estima de si está desvalorizado, pela toma de consciência do envelhecimento, especialmente através do corpo, como também pelos ideais que representam à juventude.
Muitas vezes não há uma aceitação do lugar que lhe assinala a sociedade e se manifesta por meio de um sentimento de desamparo. O idoso não ocupa mais o lugar que lhe era outorgado pela família ou pela sociedade, o outro já não mais lhe assinala o seu lugar e não pode ser nomeado desde esse lugar e isto lhe provoca uma sensação de vazio, um sentimento desvalorizado de estima de si. O sentimento de estima de si (Hornstein 2002) é a forma como o sujeito se valoriza positiva ou negativamente segundo um sistema de ideais.
A sra Marta (nome fictício), de 73, anos foi encaminhada pelo médico com o qual estava realizando um tratamento farmacológico para depressão. Na primeira entrevista ela me diz que sempre fui uma pessoa dedicada ao trabalho. Trabalhou muitos anos na área da saúde, fez mestrado e doutorado, se aposentou e agora não sabe o que fazer da sua vida, já que o trabalho era tudo para ela. Há uma dificuldade de aceitar a perda de um objeto libidinalmente investido, para poder escolher um novo objeto. Ela vivencia essa perda como uma ameaça à sua integridade, sente a imagem de s i como profissional, na velhice, desvalorizada e isso lhe provoca uma grande frustração. A falta de reconhecimento a coloca na condição de desamparo, de falta de prestígio, em definitiva, de falta de amor. Isto acontece quando ela volta ao local de trabalho e as pessoas com as quais trabalhava não lhe prestam mais atenção. A vivência dessa situação se exprime também no corpo por meio de tonturas, perda de equilíbrio e um grande medo de vir a ter Mal de Parkinson, sintomas que são trabalhados durante a terapia e, na medida em que consegue ressignificá-los, ela começa a se interessar em realizar um trabalho nas comunidades carentes. Dessa maneira estabelece novos vínculos e surgem novos projetos que a colocam novamente no trânsito do desejo.
Em O futuro de uma ilusão (1928), Freud nos diz que a libido segue o caminho das necessidades narcísicas e investe naqueles objetos que asseguram a sua satisfação, perante a perda de objetos investidos há uma excitação frustrada e a libido insatisfeita se manifesta em angústia e revela o desamparo do sujeito. Segundo Freud n O Mal-Estar na Civilização (1929-30), são três as fontes do sofrimento humano: o próprio corpo que está condenado ao declínio e ao aniquilamento, as ameaças do mundo exterior e, por último, a relação com as outras pessoas. Estas formas de ameaças, especialmente o corpo e a relação com as pessoas, são sentidas de uma forma mais contundente na velhice e destacam a posição do sujeito na sua condição de desamparo. A ameaça do corpo em declínio se manifesta pela fragilidade, sobretudo em idades mais avançadas em que se exprime através do medo da dependência, além do sofrimento provocado em alguns casos pela dor e a consciência da finitude. A falta de vínculos afetivos causa um sentimento de desamparo expressado pelo sentimento de solidão, da ausência de amor e da falta de proteção do outro, sendo assim, o homem é confrontado à precariedade de sua existência e, perante essa insegurança e a falta de sustentação proveniente do outro, o idoso poderá sucumbir a um serio episódio depressivo.
Sabemos que desde a mais terna infância, o bebê vivencia o desamparo. Esta condição originária é a base da constituição do sujeito. Ele precisa da ajuda do outro, da mãe ou substituto da mãe, que lhe dará a proteção necessária para sua sobrevivência. Esse primeiro momento de desamparo originário deixará um traço indelével no psiquismo e será re-editado a cada vivência de perda, acompanhado da grande angústia que aparece nos momentos em que o idoso sente de forma inexorável, por exemplo, a solidão, a fragilidade corporal, a perda dos seres queridos, e mostra de maneira inegável a dor de existir do ser humano. Dessa forma ele é confrontado constantemente com a condição originária de desamparo que se manifesta na falta de garantia no que diz respeito à sua existência e ao seu futuro.
Ora, se pensarmos que o individuo cada vez mais vive numa cultura contemporânea auto-centralizada, egocêntrica na qual o idoso tem poucas oportunidades de estabelecer novos vínculos ou fortalecer os já existentes, inferimos que o idoso na condição de fragilidade poderá sucumbir a um episódio depressivo pela falta de apoio, de amor, em suma, da escassez de trocas relacionais, ou seja, pela falta de diálogo com seu entorno. Dessa forma a sociedade contribui para a reclusão do idoso. Sendo assim, o idoso se isola porque acontece um duplo encerramento, por um lado o idoso se fecha cada vez mais no seu mundo porque não encontra estímulos externos e, por outro lado, a sociedade não se comunica mais com o idoso o que também provoca o seu retraimento. Um paciente me diz que ele não sabe como conviver com a solidão, que tudo seria muito mais fácil se ele morasse com um dos seus filhos ou pudesse compartilhar mais tempo junto a eles, porém ele não pode incomodá-los porque os filhos têm suas famílias e estão muito ocupados com seus trabalhos e suas atividades.
Podemos afirmar que é na velhice que se apresenta com maior impiedade o sentimento de desamparo, especialmente quando falamos da velhice fragilizada. Nessa situação de fragilidade, o sentimento de desamparo surge com toda sua força levando muitas vezes o idoso a um estado de vazio, de fixidez, de insegurança. Nesse sentido, a depressão (Chemama, 2007) seria uma forma acentuada, quase patológica, de desamparo.
Os idosos que atravessam por um episódio depressivo se queixam de um mal-estar físico que muitas vezes não conseguem explicar e, outras vezes, se mostram preocupados por acreditarem que podem ter alguma doença o que, em ambos os casos, lhes causa uma grande angústia. Acometidos por essas ideias hipocondríacas, eles procuram por diagnósticos médicos de diversos especialistas, que possam prever alguma doença, não poucas vezes consideradas fatais por eles. Muitas vezes, segundo Peruchón (1992), as queixas somáticas que apresentam os idosos poderiam ser consideradas hipocondríacas pela maneira exagerada em que as exprimem.
Esse estado de angústia é decorrente de uma grande quantidade de libido desligada que não encontra um representante psíquico. Na medida em que a pessoa envelhece, as perdas se acentuam e, a libido retirada dos objetos não encontra outros objetos substitutos para ser investida novamente. O sujeito é, cada vez mais, acometido pelo excesso de excitações desligadas, de modo que a libido permanece flutuante e provoca uma angústia difusa, somática, estancando-se no nível de um órgão, de uma parte do corpo, ou no eu, e se manifesta por meio de inúmeras queixas hipocondríacas. Sendo assim, o idoso retira a libido do mundo exterior -há uma falta de interesse pelos objetos do mundo exterior- e se concentra nas queixas que o perturbam (Peruchón, 1992).
Um paciente diz: "Continuamente estou no pronto socorro porque tenho palpitações, tenho medo de ter um ataque cardíaco". Outro reclama de dor de cabeça e acredita estar com pressão alta; ainda outro paciente queixa-se da cabeça pesada, do medo de um derrame ou da iminência de um ataque do coração. Observamos que existe um grande medo de que os sintomas deflagrem alguma doença grave que possa levá-los à morte.
Quando nos referimos ao corpo, é comum pensar no corpo biológico, anatômico, o corpo como uma realidade objetiva. Porém, quando falamos de corpo na psicanálise, falamos do corpo a partir de outro sentido, de um corpo submetido à linguagem, um corpo investido libidinalmente, um corpo erógeno revestido de significações que é suporte das emoções, da nossa realidade psíquica, onde se inscrevem as vivências das relações libidinais, afetivas, e que atua como memória inconsciente de todas essas experiências.
Na hipocondria, o sofrimento se apresenta por meio de uma representação imaginária do corpo, ela ocupa um lugar intermediário entre a doença orgânica manifesta e os processos psicopatológicos. O sujeito manifestaria de uma forma deslocada, as dores do seu próprio drama (Volich 2005). As desagradáveis percepções corporais hipocondríacas do idoso pareceriam estar intimamente relacionadas à consciência da finitude; é como se cada sintoma ou doença imaginária confrontassem o indivíduo com a possibilidade de vir a morrer, o que provoca uma grande angústia. Essa angústia hipocondríaca seria um sinal de alarme, de perigo, relacionado ao medo de aniquilamento, que estaria vinculado, em última instância, à dificuldade de lidar com a morte. Essa dificuldade estaria relacionada à perda de um objeto muito precioso, no caso a própria vida, o que produz uma grande comoção afetiva. Desta maneira é importante efetuar um trabalho de luto difícil de ser realizado já que se trata de um luto antecipado pela própria vida, entretanto torna-se necessário um trabalho elaborativo para não sucumbir ao medo do fim da vida e, por conseguinte, a um grave episódio depressivo.
Podemos concluir que alguns idosos têm dificuldades de realizar um desligamento saudável dos investimentos e manter as relações objetais necessárias para não sucumbir a um grave episódio depressivo. Por isto, se torna importante que o idoso construa novos laços afetivos, reafirme os vínculos familiares, muitas vezes alquebrados, realize novas atividades para recuperar a capacidade de sonhar, de criar e de reconhecer que existe uma possibilidade de futuro, por meio de projetos passíveis de serem realizados o que determina a re-elaboração do próprio projeto de vida.
Dessa forma, para poder levar adiante o seu projeto de vida e que seu desejo não vacile perante a perda, o idoso precisa se adequar à nova realidade, aceitando as mudanças por meio de um difícil trabalho psíquico de elaboração das perdas e de construção dessa nova realidade.
Entretanto, sabemos que a elaboração das perdas, a sustentação dos laços afetivos e o ajustamento a nova realidade não sempre serão alcançados, por um lado, dependerá dos recursos que a pessoa tem para enfrentar a perda e, por outro lado, pela complexidade do próprio entorno em que o idoso pode estar inserido. Dessa forma, ele será confrontado constantemente com a situação originária de desamparo que se manifesta na falta de garantia no que diz respeito à sua vida e ao seu futuro e que poderá levá-lo a um episódio depressivo.
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