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Número 3 - Octubre 2003
Mal-estar na atualidade
uma visão através da anorexia e bulimia

Suzana Assis Brasil de Morais

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O objetivo deste trabalho é traçar algumas considerações que nos permitam discutir as relações entre a cultura e as patologias : anorexia e bulimia. Acreditamos ser possível fazer entrelaçamentos entre o significado que estas possuem socialmente e sua disseminação no passado e na atualidade.

Primeiramente trazemos algumas contribuições sobre a questão do alimento inserido na cultura, com o objetivo de entendermos o quanto este é carregado de significados, conscientes e inconscientes, sendo que estes são passados e modificados ao longo das gerações.

Na Grécia Antiga, segundo ORNELLAS (1978) o alimento era extremamente apreciado e valorizado, o mel, por exemplo, era considerado pelos filósofos "orvalho destilado das estrelas e do arco-íris". Platão comparava a culinária à oratória. E é desta época histórica que herdamos o respeito pelo bem comer e bem viver hábitos exaltados por Epicuro, filósofo grego que cantava o conforto da vida e os prazeres da mesa. Interessante também é notar que, como nos diz CORDÁS (1993), os gregos que nos ensinaram a comer bem são também os que ofereceram à Igreja as bases para condenação do alimento. Os pitagóricos, Eurípedes e, posteriormente, Platão, defendiam a idéia da libertação da alma através do abandono do corpo e da não alimentação deste.

Em Roma, ainda de acordo com ORNELLAS (1978), inicialmente os hábitos alimentares eram frugais e estimulava-se socialmente que se comesse pouco e alimentos leves. Entretanto com o enriquecimento desta através de suas conquistas, e consequentemente os hábitos forma mudando. Os banquetes passaram a contar com pratos mais complexos e, finalmente, as orgias faziam parte da cultura de Roma. Estas festas consistiam em dias consecutivos onde aqueles que pertenciam a alta sociedade da época praticavam todo tipo de excesso, comendo, bebendo e fazendo sexo. É interessante notar que este foi um dos motivos de enfraquecimento desta potência da Antigüidade que acabou em decadência invadida pelos bárbaros. Pode-se pensar que através deste dado histórico tenha se fortalecido a idéia de que excessos relacionados à alimentação sejam algo condenável, que implica em castigos e retaliações. A Igreja que se fortaleceu após este período histórico teve assim mais um argumento para condenar os excessos alimentares e exaltar a moderação como uma virtude a ser buscada por todos.

E em relação à Idade Contemporânea, mais próxima de nossa realidade, a autora (pg. 92) diz que :

"A era dos descobrimentos propicia a expansão comercial por toda a Europa e favorece o intercâmbio com o Novo Mundo, o que repercute nos hábitos alimentares de uns e outros. (...) A Itália teve contribuição marcada no surgimento da renascença, de certo modo irreconciliável com outro movimento contemporâneo, a Reforma (...) A Reforma que se constituía em uma renovação moral atingia, também, os hábitos alimentares, pregando a moderação".

Após este breve recorrido da história da alimentação propomos que se pense no quanto os hábitos alimentares tem relação com a organização social de um contexto histórico assim como através deles podemos entender muito do funcionamento de um povo. Acreditamos que estas noções podem nos ajudar a entender melhor a proposta deste trabalho que discute as relações entre a cultura e os transtornos alimentares.

Consideramos um ponto importante tentarmos entender agora a representação da comida a partir do ideal cristão, já que fazemos parte de uma cultura baseada nestes princípios e valores, o que chamamos de cultura ocidental.

De acordo com o momento histórico os valores católicos tem maior ou menor influência na população em geral, mas sabemos que estando inseridos na moral cristã, não temos como "escapar" totalmente dela enquanto moderadora dos mesmos.

Sabe-se que a gula é considerada um dos sete pecados capitais e, portanto, comer por prazer ou em excesso é ir contra os mandamentos da Igreja Católica. O jejum sempre foi cultuado como forma de aproximação com a divindade e era um hábito apregoado pela Igreja Católica em vários momentos da história.

Através do Dicionário de teologia bíblica (1973, pg.548 ) podemos ter uma pequena mostra do significado religioso do jejum :

"O jejum no Antigo Testamento, não é praticado em razão de si mesmo. Exigindo uma atitude exterior de extrema seriedade, era ele parte extraordinária e sensacional da atitude cúltica e religiosa de um indivíduo ou de todo o povo, quando se voltavam a Deus em meio a grande necessidade. (...) estão ainda ligados ao jejum : (...) renúncia sexual e ao cuidado com o corpo. " Ainda neste Dicionário se afirma que o jejum é a expressão no exterior de um pecado consciente contra o poder de Deus e finaliza dizendo que : "Jejum é a oração de quem tudo espera de Deus para si."

Podemos através desta citação nos aproximar do significado de jejum para os católicos, é uma prova de devoção irrefutável. Sem esquecer também, como diz BIDAUD (1998) que tanto na mitologia como na Bíblia, as relações entre os deuses e o homem sempre estão perpassadas pela questão da alimentação. Esta regula um sistema de interditos e exclusões, por exemplo, entre os povos antigos a fartura era entendida como um presente divino assim como as más colheitas eram interpretadas como um castigo vindo dos mesmos.

Se pensarmos nas anoréxicas dentro deste âmbito podemos, talvez, dizer que elas estão "esperando tudo de Deus", ou seja, tentam viver como se não necessitassem de nada, nem de alimento, é uma forma de sentirem-se próximas de ser uma santidade. Em relação a bulimia podemos pensar que elas realizam o gozo do pecado acreditando controla-lo, quer dizer, empanturram-se de comida e purgam o pecado/alimento através da conduta compensatória, vômitos ou laxantes. Acreditamos ser pertinente entender o ritual anoréxico, pensar que este sujeito está orando, mas para quem ora a anoréxica ? Bem, podemos pensar que sua oração é em nome do gozo do Outro, já que estaria impossibilitada de viver o gozo fálico. A anoréxica capturada em sua doença, goza atraindo olhar do outro para si, a admiração narcísica por alguém que consegue abrir mão do que é necessidade comum a todos, a comida.

Neste sentido BIDAUD (1998, pg. 25) : " A anoréxica se afirma, assim, contra qualquer troca : ela não quer convencer. Como os deuses (aqueles do Olimpo e as criaturas do Paraíso cristão ignoram a fome) , ela se apresenta como não se tendo originado da necessidade comum, nem sujeito nem objeto de demanda alguma. Tentando estabelecer seu domínio do objeto da necessidade, ela se desfaz de uma relação com o outro, percebida como alienante e despedaçadora".

Neste ponto achamos interessante trazer para a discussão dois casos públicos de transtornos alimentares, um de anorexia e outro de bulimia. Um representando o caráter santo da anoréxica dos tempos antigos e outro da pecadora da modernidade que pôde ser assistido na televisão, Catarina de Siena e Leca. Lembrando ainda o que nos diz CORDÁS (1998, p. 7) : "Desde que Eva teve o primeiro acesso bulímico da História e comeu a maçã proibida, a mulher, a comida e o pecado parecem caminhar juntos."

Entendendo mais profundamente as patologias anorexia e bulimia pode-se perceber que, enquanto a anoréxica é uma miltante ferrenha da sua própria causa, não comer, a bulímica é aquela que cede às tentações da carne e depois paga seu pecado, purgando o que ingeriu. Podemos observar ainda neste ponto a questão do gozo da anoréxica e seu caráter enigmático, como diz BIDAUD (1998 , p. 27) o espaço de gozo se dá na vacilação entre comer e não comer, é um laço de fascinação da anoréxica com o alimento. E diz ainda que "não é por falta de interesse pela própria conservação, mas, ao contrário, porque ela só faz ocupar-se disso e se vê na impossibilidade de interessar-se por outra coisa." É fundamental para entendermos anorexia e bulimia que não há um registro de morte, sim uma preocupação ferrenha consigo mesma, elas não estão em busca de morrer, mas sim do gozo de impor seus próprios limites entre vida e morte. Brincar de serem suas próprias deusas !

BRUSSET (in: Anorexia e Bulimia,1999, pg. 92) nos lembra o quanto o excesso alimentar, culturalmente, está associado à excesso sexual, da orgia e desta forma se associa a certos aspectos da sexualidade feminina como insaciável e devoradora. O autor também cita que a bulimia ironiza a cozinha e o bom gosto é uma ruptura violenta com a adaptação às necessidades biológicas, com a ética e a estética, é como uma revanche selvagem da natureza sobre a cultura e do primitivo sobre o civilizado.

Mais uma vez podemos ver o quanto bulimia e anorexia apontam e mexem com imagens e valores sociais, elas parecem ter uma aura de afronta ao que está instituído talvez porque vivam às voltas com um gozo impossível, aquele que é mortal para o psiquismo, o gozo total.

 

A cultura influenciando anorexia e bulimia

Agora propomos que se reflita sobre a relação que estamos estabelecendo ao longo deste trabalho, anorexia e bulimia com a cultura. Por que estas patologias se prestam a esta discussão? O que os estudiosos do assunto tem a nos dizer?

Tentaremos responder estas questões tanto usando a bibliografia pesquisada como tentando problematizar idéias sobre o que é considerado uma patologia.

No âmbito das patologias mentais há uma gama enorme de classificações psiquiátricas, nomeando transtornos dos mais variados tipos. A anorexia e a bulimia, por exemplo, são os Transtornos Alimentares mais conhecidos junto com a obesidade. Nem sempre foi assim como veremos logo.

De acordo com os DSMs, a bulimia só passa a figurar entre os transtornos mentais a partir de 1980 e a anorexia vem passando por mudanças conceituais até hoje.

Neste momento consideramos pertinente lembrar de outros comportamentos que já foram considerados transtornos mentais e não o são atualmente, como o homossexualismo, e o tabagismo que não era e agora o é. Com certeza, estes não são os únicos, comportamentos mudam ao longo da história assim como o conceito que a sociedade tem dos mesmos também. Diante deste quadro podemos ter a dimensão do quanto o contexto cultural pode definir se algo é patológico ou não.

Talvez devêssemos nos perguntar quando ou porque algo passa a ser considerado um transtorno mental, seria a freqüência do comportamento ou o tempo de duração dos sintomas?

Entendemos que o mais importante é avaliarmos o sofrimento e os prejuízos (sociais, familiares, etc.) do sujeito diante da situação em que se encontra. No caso da anorexia e bulimia com certeza existe sofrimento e prejuízo, o que aliás dificilmente é admitido pelas pacientes, ambas causam sérias conseqüências, inclusive, para o organismo.

Estes transtornos tem sido cada vez mais estudados e discutidos, inclusive na mídia, isto porque são consideradas patologias da modernidade. Historicamente, entretanto, este dado não se confirma. Mas podemos nos perguntar porque estas patologias passaram a freqüentar de forma assustadoramente crescente os consultórios médicos e psicológicos nas últimas décadas.

Vejamos o que os autores tem a nos dizer.

Segundo MORGAN e AZEVEDO (1998, pg. 86) a extrema valorização da magreza nas sociedades ocidentais desenvolvidas estaria fortemente associada à ocorrência de anorexia nervosa e bulimia nervosa. O que tem sido comprovado por vários estudos epidemiológicos que demonstram o aumento da incidência destes transtornos concomitante à evolução do padrão de beleza cada vez mais magro.

Outro aspecto interessante ressaltado pelas autoras (pg. 88) é que ao mesmo tempo se ofertam abundantemente alimentos de alto valor calórico e rápido consumo, a vida se torna mais sedentária e os modelos de beleza são cada vez mais magros, muitas vezes apresentando um corpo pré-adolescente sem formas definidas.

Em estudo feito por Garner e Garfinkel (1980) foram analisados grupos ocupacionais de modelos, bailarinas, atletas, nutricionistas onde se verificou que estas estão mais vulneráveis aos transtornos alimentares do que mulheres comuns da mesma idade e nível social. A conclusão dos autores é de que estes achados corroboram a hipótese de que a pressão para emagrecer, incrementada pela expectativa de bom desempenho, são o meio social ideal para a expressão da anorexia.

A beleza e o corpo, principalmente o feminino, sempre ocuparam um lugar importante no imaginário social, são sinônimos de sedução, de poder, enfim sempre foi assunto e preocupação de homens e mulheres. O que talvez tenha mudado é que hoje temos um padrão bastante rígido de beleza, não há lugar para imperfeições.

Podemos pensar sobre o que nos diz ROSSO (1993, pg. 120) : "Nada é mais virtual que o conceito de beleza.". A autora lembra ainda Giulio Carlo Aragan que escreveu em A Arte moderna : " Dizer que uma coisa é bela é um juízo; a coisa não é bela em si, mas no juízo que a define como tal." Estes conceitos nos fazem pensar no quanto estamos perdendo esta noção ao passo que a beleza vem sendo, cada vez mais, padronizada. Não se tem o direito de envelhecer, engordar minimamente ou simplesmente ser diferente do que a mídia dita como belo. Nos arriscamos a afirmar que a grande maioria das mulheres, independente de idade e classe social, se questionadas, responderiam que não estão satisfeitas com o seu peso e que estão fazendo ou planejando uma dieta. Isto sem relação direta com o fato de ter ou não um peso adequado ao seu tamanho e idade, este é um dado que pode nos fazer refletir sobre porque não podemos estar satisfeitas com nosso corpo. Aliás tamanho e idade são aspectos ignorados tanto pela mídia da moda como pela maioria das pessoas que deseja um corpo igual ao das modelos que desfilam esta moda, e quem nunca desejou isto que atire a primeira pedra !

Neste sentido CORDÁS (1998, pg.25) alerta para o fato de que a mídia insufla e aproveita a associação de magreza com saúde e sucesso para alimentar a enorme indústria de consumo voltada para esta área e desta forma tem levado a maioria dos indivíduos da nossa cultura à busca do corpo ideal. Este ideal de corpo que está presente na mídia o tempo todo bombardeando nossos olhos prega, em geral, corpos esculturais, magros e malhados o que não condiz com a realidade da maioria dos mortais.

No entanto mesmo admitindo que se não todos a maioria de nós já desejou este tal corpo perfeito é importante pensarmos no sentido que isto tem hoje e nas proporções que este valor tomou em nossa sociedade.

A "geração saúde" que iniciou na década de 80 com o boom das academias de ginástica, tem pago um preço alto, muitas vezes com a própria saúde, para atingir o ideal estabelecido por nós mesmos do que é ser belo. As revistas e meios de comunicação em geral estão repletos de casos onde jovens prejudicaram sua saúde com anabolizantes, anfetaminas, cirurgias, enfim inúmeras armas que compõe o arsenal para combater as gordurinhas indesejadas e que servem para encurtar o caminho para se chegar a um corpo perfeito. A pergunta que me faço é que sentido tem para estas pessoas, que muitas vezes já tem um corpo esbelto, se submeterem a riscos tais riscos ?

Acreditamos que cada um teria vários argumentos para responder esta pergunta, mas o que me parece claro é que ser magro, ser atlético hoje tem um significado muito maior do que a vaidade em si, ser belo é ser vencedor, é enfim garantir um lugar de destaque em uma sociedade onde não há espaço para perdedores.

Pode-se dizer em relação ao conceito de beleza em nossa cultura atual:

"O prazer estético é necessariamente um prazer "à distância". O objeto esteticamente belo oferece apenas uma promessa de satisfação do desejo. (...) A beleza só pode ser apreciada como tal se não houver proximidade. A proximidade elimina o caráter enigmático e "projetivo" da beleza. O belo só pode ser admirado, não pode ser vivido. É vazio em si mesmo. " ROSSO, Mireia C. (1993, pg. 124)

 

A cultura atual : cultura do narcisismo

Neste momento descrevemos e discutimos o que animou a realização deste trabalho, ou seja, pensar sobre aspectos da cultura atual que me parecem ter importante um papel como detonadores de patologias, inclusive destas que estamos estudando até aqui.

Sabemos que a cultura na qual o indivíduo está inserido tem importante influência sobre sua estruturação psíquica. O meio que nos cerca imprime valores e idéias que passam a fazer parte da constituição da subjetividade e da razão do sujeito. Além disto o ser humano é um ser social por natureza. É claro que cada país, cidade ou região tem sua cultura própria que lhe é característica, entretanto hoje, mais do que nunca, podemos falar de uma cultura ocidental, onde os valores são partilhados em larga escala. É o mundo globalizado.

Um mundo conectado pela internet através da qual circulam informações instantaneamente, é um fenômeno que aproxima as sociedades de uma maneira que até pouco tempo não poderíamos imaginar. Não tenho aqui o objetivo de discutir o porque disto, nem os fatores positivos e negativos desta configuração social.

Pretendo sim analisar alguns aspectos que me parecem pertinentes a discussão da anorexia e bulimia como manifestações que hoje tem um sentido que não tinham antes. Se por um lado são patologias que tem a ver com a história de cada um que sofre das mesmas, ao meu ver, também podem ser entendidas como doenças que vão de encontro à um ideal social de magreza e perfeição. Sendo assim porque não entendê-las também como um sintoma social?

Para entendermos melhor esta proposta exponho aqui o que seria o ideal de eu que segundo a teoria psicanálitica, é através deste que introjetamos as leis sociais e também que importância tem este nos casos de anorexia e bulimia.

NASIO (1995, pg. 61) define o ideal de eu da seguinte forma :

" O ideal de eu corresponde, (...) a um conjunto de traços simbólicos implicados pela linguagem, pela sociedade e pelas leis. Esses traços são introjetados e fazem a mediação na relação dual imaginária : o sujeito encontra um lugar para si num ponto - o ideal do eu - de onde se vê como passível de ser amado, na medida em que satisfaça a certas exigências. O simbólico passa a prevalecer sobre o imaginário, o ideal do eu sobre o eu."

O ideal de eu é uma aquisição do indivíduo a partir do momento em que este consegue abrir mão de seu narcisismo infantil para introjetar a lei paterna e o social, para tanto é necessário a separação efetiva da mãe no inconsciente para que se possa desejar através do próprio ideal. No caso das pacientes com anorexia e bulimia sabe-se que esta separação não ocorreu suficientemente e por isso mesmo a capacidade de simbolização de que nos fala Nasio está prejudicada.

Podemos pensar que o Ideal comum da sociedade de hoje está bastante narcisista e muito associado a aquisições concretas, o corpo exaltado é um exemplo disto, ele tem sido grande representante de nossos ideais atuais. Freud em 1923 já dizia que "o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal", sendo assim é compreensível que em uma sociedade autocentrada o corpo seja enaltecido desta forma exacerbada.

LIPPE (1999, pg. 87) nos alerta para o fato de que, a busca do ideal preserva o sujeito de engajar-se na verdadeira escolha de objeto e evita a confrontação com a separação/individuação, pois, atingir o Ideal é perder sua identidade e consequentemente o objeto de desejo que a ele se liga e ainda renunciar ao Ideal é arriscar a depleção narcísica.

Em última instância ficar "as voltas" com o Ideal é manter-se afastado da vivência e constatação de sermos sujeitos castrados e desamparados diante da morte, o que alias não deixa de ser a dificuldade de todos nós, humanos, entretanto o nível em que isto se dá na anorexia, principalmente, e bulimia é digno de nos fazer pensar. Neste esforço enorme para não sofrer esta condição do sujeito de faltoso as anoréxicas e bulímicas tentam viver em seu mundo interno como se não precisassem de nada (nem de comer) nem de ninguém.

" Esta busca do ideal se objetiva , quase se materializa, no próprio corpo da paciente, na busca de um corpo Ideal que se institui, ao mesmo tempo , suporte do Ideal do ego e objeto de completude, parte integral do ego Ideal. Atingir o corpo Ideal tenderia, para a paciente, a corresponder in fine a um estereótipo que, ao mesmo tempo, a designa e no qual ela perde, concomitantemente, sua identidade própria, um tipo de uniforme (ao qual tendem particularmente as anoréxicas cuja descrição física é notável e terrivelmente estereotipada).

O corpo uni-forme remete igualmente à forma única, à ausência de formas, ou seja, à confusão das diferenças, da diferença dos sexos principalmente, como manutenção, aqui, da bissexualidade psíquica. " DANIEL LIPPE ( pg. 87)

Esta citação de LIPPE nos fala do que é em última instância o conflito da anoréxica e na qual podemos identificar os entrecruzamentos com nosso entendimento de cultura do narcisismo.

A questão da bissexualidade, por exemplo é algo que pode ser entendido como expressão deste social, pois, na medida em que não se quer perceber a castração ou ainda não assumir que para obtermos uma identidade sexual precisamos abrir mão da bissexualidade psíquica estamos agindo em parte como a anoréxica.

Através destas citações, que condensam em parte todo o conflito das anoréxicas, podemos perceber tanto o caráter social influenciando as patologias como a psicodinâmica adjacente às mesmas.

Em tempos de clone, onde não é estranho imaginar que daqui a algum tempo possa-se escolher as características de nossos filhos previamente, porque não escolhermos somente Giseles Bündchen ou Feiticeiras? Parece que realmente o narcisismo do ser humano não tem limites, principalmente, quando este brinca de ser o Deus que ele mesmo criou a sua imagem e semelhança ! Neste contexto convoco a todos para pensarmos qual o ideal que vem nos tomando na atualidade e a serviço de que ele está assim configurado.

Talvez através de alguns exemplos que podemos observar empiricamente esclareçam melhor o que estou tentando falar. Um exemplo que pode ser observado em revistas, na TV ou jornais, é o das exigências feitas para modelos, estas são "obrigadas" a de certa forma serem anoréxicas para se manter no padrão de mercado. Sendo assim pode-se dizer que há a imposição de um ideal de beleza que exige que uma pessoa consuma muito menos alimento do que ela necessita para manter sua saúde, e isto deve ser feito a qualquer preço. Podemos ler em revistas de moda ou jornais depoimentos de meninas que estão iniciando como modelos contando de agências que "ensinam" a vomitar como forma de alcançarem o peso ideal. Desta forma podemos pensar que algo não está bem em uma sociedade onde ser modelo significa tantos sacrifícios e ao mesmo tempo 9 entre 10 meninas (estes são dados de revistas para adolescentes) sonham em ocupar este lugar e estariam dispostas a pagar qualquer preço por isto.

De acordo com BIRMAN (2000) autores, de diferentes áreas, tem considerado a cultura atual como Cultura do Narcisismo , Sociedade do Espetáculo, etc. enfim não nos importa o nome mas sim o que estes pensadores tem a nos dizer sobre o momento social que estamos atravessando e que justamente por fazermos parte dele, muitas vezes, deixamos passar desapercebidos fenômenos importantes.

As principais características desta sociedade, ainda segundo BIRMAN seriam a exterioridade e o autocentramento, o autor define (pg. 84) que" há uma exigência do espetáculo que é catalisadora dos laços sociais, pois esta mise-en-scéne é reguladora fundamental do espaço social". BIRMAN ainda nos chama atenção para à psicopatologia da pós-modernidade que, segundo ele, é caracterizada pelo fracasso do indivíduo em realizar a glorificação do eu e a estetização da existência, já que ao estar doente o sujeito se encontra incapaz de exercer a performance que lhe é exigida socialmente. O autor chega a afirmar que a alienação se transforma em significado e valor social, isto porque, o sujeito autocentrado é efetivamente fora-de-si, pois, vive de acordo com a exterioridade. Como diz o autor, (pg. 171) antes o fora-de-si era totalmente identificado com a psicose, agora, pelo contrário isto passa a ser algo valorizado já que é desta forma que o sujeito consegue viver em função do " polimento de sua existência, dedicando-se a sedução e fascínio do outro, pela mediação capturante das imagens exibidas na cena social. " (pg. 190)

Talvez possamos nos perguntar o que tem isto a ver com anorexia e bulimia , acredito que para entendermos esta relação devemos aprofundar nossa capacidade de análise e em primeiro lugar convido-os a pensar em que implicações práticas podemos relacionar com estes fenômenos descritos como autocentramento e exterioridade.

Este funcionamento tem a ver com o que estávamos expondo até então, em uma sociedade do espetáculo é coerente que se considere normal comportamentos exagerados de preocupação com o peso, ou com o desejo geral de ser modelo ou ser famoso, enfim é dentro desta lógica que há um sentido em tudo isto. Dentro desta lógica muito da nossa subjetividade vem se construindo, os ideais e valores se constituindo e sendo assim podemos pensar porque anorexia e bulimia tem ocorrido com maior freqüência na população.

Através deste modo de ser autocentrado e exteriorizado o sofrimento não tem um espaço reconhecido socialmente como legítimo, não temos tempo a perder com isto ! O desamparo como característica inerente do ser humano tem sido negado socialmente e assim certas patologias surgem como a única forma de lidar e expressar este sofrimento.

FREUD (1930) no ensaio Mal-estar da civilização já nos falava das dificuldades que são inerentes a nossa condição de seres humanos, indica que nosso sofrimento provém de três fontes : o poder superior da natureza, a fragilidade do nossos próprios corpos e a inadequação das regras que ajustam os relacionamentos humanos. Aponta ainda para o fato de que a própria civilização, ainda que necessária para nossa organização, é causadora de sofrimento.

Pensemos nesta idéia no contexto atual, em relação ao domínio da natureza o homem tem alcançado tecnologias extremamente eficazes e avançadas para realizar tal tarefa, mas com certeza não dominou e dificilmente a dominará totalmente um dia. Quanto a fragilidade de nossos corpos podemos pensar que também houveram grandes avanços da medicina, mas também surgiram novos desafios, a aids por exemplo, e continuamos sendo frágeis. Por fim no que diz respeito aos relacionamentos humanos não poderei discutir assunto tão complexo, mas lanço uma pequena idéia de que com tantos avanços e tanto crescimento da civilização com certeza estes estão ainda mais complexos que na época de Freud.

Pretendo com esta exposição dizer que acredito que o homem justamente por suas inúmeras e rápidas conquistas tecnológicas, por um lado evolui, mas penso que o outro lado da moeda aponta um despreparo para lidar psiquicamente com tais conquistas. Talvez em função desta rapidez em que as coisas tem ocorrido não tenhamos tempo (psíquico) de elaborar e entender efetivamente o que nos cerca. Neste ponto articulo o que discutimos até aqui sobre nossa cultura com a questão da anorexia e da bulimia. São necessárias grandes doses de narcisismo, para recusar comer, como o faz a anoréxica. Isto reflete toda a sua fragilidade já que, para usar desta forma sua libido narcísica é porque não consegue realizar movimentos básicos de separação e diferenciação do outro. Esta não diferenciação é apontada por BIRMAN como reflexo deste modo de ser atual, a anorexia seria mais uma forma de expressão do mesmo , na medida em que busca um borramento das diferenças sexuais.

É a partir desta visão pensamos ser possível entender a anorexia e a bulimia como fenômenos patológicos do social, na medida em que o corpo é superinvestido e que há uma imagem ideal a ser alcançada custe o que custar.

São regimes, cremes, remédios, malhação, cirurgias de todas as formas imagináveis que são vendidas como solução milagrosa para nossos corpos com gorduras localizadas, estrias e rugas, enfim há uma indústria que movimenta milhões todo ano baseada na vaidade humana cada vez mais incrementada. É esta a sociedade que acaba por dar um sentido para anorexia e bulimia não como expressões de sofrimento do sujeito, mas quase como mais uma das forma de chegar-se ao tão almejado ideal de magreza.

Finalizando considero importante ressaltar que acredito que a cultura não determina o surgimento destas patologias, mas sim participa disto na medida em que ajuda a construir uma lógica dentro da qual ser anoréxico ou bulímico passam a ter algum sentido.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIDAUD, Éric. Anorexia mental, ascese, mística. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1998.

BIRMAN, Joel. Mal-estar na Atualidade - A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.

CORDÁS, Táki A. Fome de cão. São Paulo, Maltese, 1993.

Dicionário de Teologia Bíblica v. 1, São Paulo, Loyola, 1973.

DSM IV, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 4 ª ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995.

FREUD, Sigmund . Mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro, Edição Eletrônica Imago, 1969.

NASIO, Juan D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.

ORNELLAS, Liselotte H. A alimentação através dos tempos. Rio de Janeiro, Série cadernos Didáticos, FENAME, 1978.

URRIBARRI, R. organizador. Anorexia e Bulimia. São Paulo, Escuta, 1999.

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