Estados Generales del Psicoanálisis |
Estados Gerais: Um balanço provisório
María Teresa Martins Ramos Lamberte
Chegamos ao final dos Estados Gerais da Psicanálise que começaram por uma convocatória de René Major que nos convidava a debater os problemas cruciais para o futuro da psicanálise após a experiência de algumas gerações.
Proposta interessante que, se de um lado reconhecia uma crise na psicanálise, por outro se dirigia à analistas espalhados pelos quatro cantos do mundo, falando línguas diferentes e dialetos analíticos distintos, oferecendo-nos a possibilidade de, em nome próprio, pensar em novos caminhos para enfrentar a crise (se é que de fato ela existe).
No Brasil, foi graças ao extraordinário empenho de Helena Bessermann Viana e principalmente de Maria Cristina Magalhães que o trabalho foi tomando forma.
De minha parte entendi essa convocatória como uma possibilidade que me foi oferecida para, junto com outros, pensar em como relacionar o inconsciente freudiano com as transformações sociais e históricas do mundo contemporâneo.
Os Estados Gerais começaram bem. Muito bem eu diria. As falas da primeira manhã em que os autores falaram em nome próprio e apresentaram textos assinados foram excelentes. O jogo começava bem, prometia muitos gols e uma certa alegria. No entanto não demorou muito para o mal estar se instalar, o tempo de uma pausa para o almoço. A tarde mesa da tarde estava reservada para a discussão da clínica psicanalítica em nossos dias. E assim foi. A tarde foi chata, chatíssima. Continuando com a analogia futebolística, a bola não rolava, jogo feio, jogo de retranca.
No entanto acredito que foi uma tarde importantíssima. Por que? Em primeiro lugar porque, mais uma vez, mostrou como é difícil falar de clínica em grandes espaços como este. Mas principalmente porque trouxe a tona a dificuldade que, nós analistas, temos em nós apagar perante o texto e a fala do outro.
A idéia era boa. Os textos circulariam pela Internet, como de fato circularam, todos teriam acesso a eles e alguns relatores os exporiam, ou resumiriam (nem sei qual termo usar) e apresentariam um texto ao público que esse pudesse discutí-lo. Mas não foi bem isso que aconteceu. Nem todos os textos foram lidos pelos relatores, enquanto outros foram lidos apenas parcialmente. Dificuldades de tempo, língua... vá lá saber. Ou quem sabe falta de curiosidade mesmo para com esse "outro". O fato é que os textos tal qual foram apresentados, em sua maioria, puseram a nu a dificuldade dos relatores em se apagar perante os textos lidos. Muitos dos textos apresentados foram monolíticos, mono linguísticos não nos permitindo sentir a diversidade embutida neles e que supostamente deveriam transmitir.
Aqui quero deixar bem claro que isto não é uma crítica a esse ou aquele relator. Qualquer um de nós poderia Ter incorrido no mesmo. A verdade é que apagar-se perante a fala do outro, abandonar as próprias certezas é um desafio que deve ser sempre renovado.
Se foi difícil para os relatores foi , também, muito difícil para os ouvintes. Criou-se um estranhamento. Fomos forçados a "escutar" de outro modo. Não sabíamos se o que estávamos ouvindo era uma mera síntese ou se refletia as idéias e "verdades" do relator. Em função do que nos foi , enquanto ouvintes, impossível nos identificarmos com o relator, aceitar ou rejeitar a- priori um texto como, muitas vezes, fazemos quando reconhecemos um texto e seu autor.
Ficou claro nessa primeira tarde que não basta mudar a forma. A Internet por si só não faz milagres. A transformação tem que ser mais profunda. Em todo caso acho que nesse primeiro dia fomos, todos nós relatores e ouvintes, submetidos a um exercício de desnarcisação. E é por isso que apesar do mal estar provocado, considero que foi um ganho. Imagino que muitos não concordarão comigo. Mas quando digo que foi um ganho é porque revelou nossas dificuldades enquanto comunidade. Mostrou como é difícil não se sobrepor ao texto de um outro e como é difícil ouvir um texto no qual não nos reconhecemos e não nos sentimos incluídos. É principalmente pelas falhas que o método escolhido revelou que considero que foi um ganho, muito mais do que pela qualidade, indiscutível, dos trabalhos apresentados.
A manhã do segundo dia, dedicada à questão da transmissão, começou tensa. O temporal que ameaçava desabar lá fora, ameaçava desabar também aqui dentro do Grand Anphi de la Sorbonne. Difícil falar de transmissão, transferências, análises e supervisão.
O clima desanuviou subitamente na tarde do segundo dia na mesa dedicada às Instituições analíticas. Patrick Guiomard animador da mesa, disse que tivera a impressão de que o Colóquio finalmente começara. Começara, começara faz tempo. Diria simplesmente que o gol finalmente aconteceu, que a bola encontrou o caminho da rede. Os aplausos foram tantos que mais que, mais que um reconhecimento à qualidade incontestável dos trabalhos, me pareceram uma maneira de dar vazão à tensão represada.
A partir daí o clima foi se modificando e me foi possível perceber entre, tantos outros, alguns estilos e tipos de sofrimento muito distintos. Por um lado os latino-americanos que se referiam constantemente aos anos de chumbo, tortura, miséria, falta de democracia em seus respectivos países. De outro, os franceses (lacanianos ou não) que me parecem, mais que outros se fazerem depositários de um luto impossível de Lacan, que, por momento torna alguns deles ácidos em demasia para com a psicanálise americana, o que não deixou de ser ressentido por seus representantes. E finalmente os de língua alemã que expressavam seu sofrimento pelo quase desaparecimento da psicanálise na língua e país que lhe deu origem. Confesso que fiquei extremamente tocada pela sobriedade e intensidade dessa dor.
A manhã de Segunda feira foi dedicada às relações da psicanálise com o social e político. Parece-me que nessa mesa houve um certo consenso: a de que a psicanálise já estava madura para abandonar uma certa visão ingênua que reduziria a psicanálise ao desenvolvimento normal e patológico do indivíduo deixando às outras ciências humanas o estudo daquilo que diria respeito ao político. Todos os trabalhos pareceram refletir a certeza de que o analista tem, não só o direito como também o dever, de dizer algo a respeito do político. Pessoalmente não tenho a menor dúvida. Não acredito que o analista possa pretender nada escutar de um mundo exterior cujo ruído fragoroso chega ao ouvido de todos nós. A crítica da globalização, da miséria e da exclusão integram, hoje em dia, o repertório de todo " cidadão politicamente correto" A meu ver, cabe ao analista avançar cada vez mais nesta questão, ultrapassar o mero politicamente correto , o que só conseguirá se puser a teoria psicanalítica à prova e cruzando-a com outros discursos , para tentar esclarecer as causas obscuras da segregação seja ela do louco, do pobre, do desempregado ou daquele marcado por outra cor de pele ou ouro credo.
O fato é, e aqui estou falando em nome próprio, que o analista não pode se dar ao luxo de nada querer saber daquilo que se passa a seu redor. Cabe-lhe refletir sobre a violência, miséria, guerra, discriminação, até porque são sinais de um mal estar na civilização, cujos efeitos o analista acolhe em sua clínica sob a forma de sintoma.
Nas discussões dessa manhã senti, apenas, a falta de uma discussão mais aprofundada sobre o lugar do dinheiro e do pagamento em nossa clínica. Ainda hoje existem analistas que aceitam ou deixam de aceitar um paciente em função de suas possibilidades econômicas. Em vez de escutar o sofrimento daquele que "sofre em seu pensamento ou em seu corpo" e poder acolhê-lo, estão mais preocupados em quanto tal paciente pode pagar. Definem a- priori , um preço que consideram ser o seu, preço que acaba funcionando como critério de analisibilidade. Considero isso inadmissível. Um analista não pode Ter um preço neste sentido. Além do que é bem sabido que os analistas mais caros não são necessariamente os melhores. E ainda, a esse respeito, talvez seja urgente rever o péssimo hábito de encaminhar sistematicamente aqueles que podem pagar pouco para analistas iniciantes, quando muitas vezes é bem sabido é justamente o sofrimento desses pacientes que exigira a escuta de analistas mais experientes.
A tarde desse mesmo dia foi dedicada às relações da psicanálise com a arte, literatura e filosofia, nos comoveu com um relato clínico maravilhoso que veio nos lembrar que, embora difícil é sempre possível falar de clínica e de criar na clínica. O relato foi uma pequena obra prima, digna de uma mesa que falava das relações da psicanálise com a arte.
Terça de manhã na mesa sobre as relações sobre a psicanálise com as neuro ciências tivemos o prazer de ouvir algumas vozes que se nomearam como dissidentes, vindos de países e línguas oficialmente não representadas que nos brindaram com seus estilos peculiares e uma grande liberdade de pensamento e expressão.
Por mais que o diálogo da psicanálise com as neuro ciências seja vital, é bom não nos esquecermos que , com o avanço da ciência, ainda que as futuras crianças sejam de proveta, a nós analistas continuará cabendo cuidar e escutar esse humano.
O que me permite começar a terminar esboçando algumas proposições para o futuro.
Sou daquelas que, embora não pertença atualmente a nenhuma instituição, acredito que elas sejam necessárias, e não um mal necessário. Não tenho ilusões, sei que não existem instituições ideais, nem acredito que é delas que vem a garantia. Mas é importante a existência de um lugar onde se possa discutir com seus pares, falar de clínica e das próprias dificuldades.
Acredito, que as instituições são necessárias ao campo analítico como os partidos políticos o são para a polis. Na ausência deles caímos nas seitas que , por definição, só podem ser autoritárias, onde há uma identificação absoluta entre o líder e o lugar que ele ocupa. Em toda instituição totalitária as instâncias de poder, da lei e do saber estão confundidas. O mesmo acontece com as sociedades totalitárias preocupadas em negar suas divisões sejam elas internas ao social ou internas ao poder. A simples existência de partidos e instituições ( e insisto aqui no plural) são marcas de uma divisão e é nesse sentido que elas são importantes. Mas isso obviamente não basta. É ainda preciso tornar nossas instituições analíticas mais democráticas, produtivas e criativas.
Em nossas sociedades contemporâneas a possibilidade de instalar instituições " mais fraternas" torna-se cada vez mais necessária, na medida em que a radicalização do individualismo acentua a rivalidade, inveja e competição. O desafio, que vejo, é o de deixar espaço para a afirmação da singularidade, exercício da autoria que remeta à uma produção fundamentada na clínica, experiência própria e intransferível e ao mesmo tempo passível de reconhecimento. Nesse contexto espero que se torne possível a pluralidade teórica e talvez nos seja possível nos reunirmos em instituições onde, de fato, o "desejo de analista" venha a ser mais forte que o de mestria.
Outra coisa que, apesar dos pesares, me faz defender a existência das instituições é o internacionalismo que possibilitam, ou deveriam possibilitar. Quando falo em internacionalismo, não estou falando numa sede e suas filiais espalhadas pelo mundo como muitas vezes, infelizmente, ainda é o caso e sim num internacionalismo que, de fato, venha a permitir a livre circulação de idéias e transferências que, como bem sabemos, não conhecem fronteiras. Caso contrário , temo que caíamos no perigo das psicanálises nacionais e, a meu ver, o pior internacionalismo ainda é de longe preferível ao melhor dos nacionalismos.
Ao afirmar isso é óbvio que não espero que os Estados Gerais venham a se transformar numa nova instituição, o que aliás em nenhum momento foi cogitado. A meu ver a proposta dos Estados Gerais de dar voz a que analistas de várias partes do mundo e de várias filiações para que pudessem falar em nome próprio foi plenamente alcançado. Daqui para a frente caberá a todos nós que deles participaram criar, como dizíamos antigamente, 2, 3 Vietnãs, ou seja várias reuniões internacionais onde, cada vez mais, analistas de diferentes filiações, línguas e culturas possam se ouvir e comunicar, abolindo cada vez mais as trincheiras e englobando, eu espero o mais rapidamente possível, analistas de países e línguas que estiveram ausentes desses Estados Gerais: Este Europeu, países africanos e do Oriente Médio. Só assim poderemos realmente dar hospitalidade ao estrangeiro que é a função primeira do analista.
E para terminar gostaria ainda de agredecer ao embaixador Uribe e ao professor Derrida pelas maravilhosas conferências com as quais nos brindaram e mais uma vez a René Major, Elisabeth Roudinesco e tantos outros que tornaram essa experiência possível.
Caterina Koltai, São Paulo, Brasil