Estados Generales del Psicoanálisis |
Considerações
sobre o Encontro dos Estados Gerais,
ocorrido de 08 a 11 de julho, em Paris
María Teresa Martins Ramos Lamberte
Aos colegas do Fórum de Psicanálise de São Paulo, aos dos Estados Gerais da Psicanálise e demais colegas
Gostaria de transmitir aos colegas algumas das impressões que me causou este encontro.
Primeiro - Sobre a originalidade da proposta, o convívio com a diversidade no laço entre analistas:
Realmente é importante esclarecer o que me parece uma confusão no entendimento por vezes feito sobre o que seja esta idéia lançada por René Major, ou seja: os assim denominados "Estados Gerais" não se caracterizam por intenções institucionais nem tão pouco um grande encontro entre os "independentes" e/ou os "insatisfeitos institucionais".
Tendo participado do Encontro Sul Americano que tivemos em novembro de 99, encontro preparatório para o geral, e este último agora em Paris, foi-me possível testemunhar a realização da idéia proposta, ou seja, a de reunir analistas de quaisquer que sejam as procedências, com a proposta de trabalho de debate em torno da psicanálise. Seja da psicanálise em intenção, seja de suas conexões, da psicanálise em extensão. E é aí justamente sua originalidade, topológica, lógica e também discursiva, na medida em que faz fundar e forçar um novo modus operandi de circulação do saber produzido em torno da psicanálise.
Há nesta experiência, a partir da qual eu me autorizo tentar transmitir minha leitura aos colegas, um convívio muito salutar entre as diferenças.
Que diferenças? Também aí podemos refletir sobre a originalidade da proposta, sobretudo pelos tempos atuais: não só o difícil convívio entre procedentes de diversas instituições analíticas, como também desses com os ditos "independentes".
Em nossos tempos vivemos por um lado a hipertrofia de instituições de ambições globalizantes, expansionistas; bem como multiplicações de pequenos grupos; e de outro lado ainda os ditos independentes, onde a grande maioria identificada aí talvez hoje seja composta por aqueles que, embora não pertencentes a uma instituição, mantenham relações de trabalho, produção e circulem em várias delas, ou seja, acabam até por ocupar um lugar no interstício das bordas do dentro-fora institucional (sem esquecer, é claro, aqueles ligados a instituições não analíticas, em hospitais, na universidade, etc; um contingente importante e crescente hoje em dia; embora aqui eu queira ressaltar as questões em torno da instituição analítica). Na verdade, com essa constatação, parece ser pouco o contingente daqueles hoje que realmente estejam contidos nas quatro paredes do consultório.
Neste sentido a diversidade é tratada para além de filosofias de princípios institucionais, mas amplia, resgata mesmo uma questão ética, tão cara que por vezes acaba subsumida nos "furores institucionais" (em sua afirmação ou negação), ou seja: porque a instituição na formação do analista? ( não vai aqui nenhuma colocação em detrimento da necessidade da instituição analítica, pelo contrário, é por sua colocação em causa que esta questão deve ser sustentada, se possível a partir da própria experiência, vivência institucional, e mesmo porque eu falo como pertencente a uma, ao FPSP).
Pode parecer um recuo para aqueles que talvez se sintam já respondidos a essa questão. De minha parte tenho percebido que essa resposta é realmente uma construção de cada um, haja à vista reconhecermos aqueles que transmitem a partir do lugar do analista pertencente ou não a uma instituição. E então, frente às colocações do tipo: "a instituição é um impossível", "a instituição é um mal necessário", "a instituição é necessária", "a instituição não é necessária"... eu diria que a instituição em tese é necessária e não suficiente e na prática é contingência, sendo buscada em momentos muito particulares de cada um.
Houve discussões bastante fertéis nesse encontro, onde se poderia facilmente pontuar algumas delas, mas com respeito exatamente à pertinência institucional, em uma das mesas foi debatido sobre a transferência intratável, "resíduo de real" que se mantém vivo, indomável pra além do divã, o quanto a instituição pode operar como suporte no acolhimento e sustentação desse "monstro solto" em transferência de trabalho (nessa mesa meu trabalho foi cuidadosamente pontuado por Kazushige Shingu -Jpn-, acerca desse resíduo de real onde em meu trabalho articulo com o pai real- "resíduo mortífero de gozo", ligado a nascente do traço, o que não se inscreve da origem, no simbólico).
Só para situar, essa foi a terceira mesa de trabalhos, de transmissão, a partir da qual o debate esquentou dando um bom desdobramento na próxima mesa, justamente sobre as instituições analíticas.
Enfim, considero ter sido rico o debate propiciado sobre a instituição analítica, a formação do analista, a transmissão da psicanálise, tomados à luz de tamanha diversidade em torno do que seja o analista. Se por um lado não tivemos tempo para filigranas, nem tão pouco grandes consensos obviamente, por outro lado estes pontos puderam ser tocados em seus aspectos essenciais, em discussões inacabadas, que espero possamos relança-las em nossos espaços de trabalho cotidiano.
Segundo - Sobre a configuração do encontro:
A retórica francesa; a multiplicidade brasileira; a defesa dos norte americanos; os sinceros pedidos de socorro dos alemães e sobretudo dos austríacos; a fleugma dos ingleses; a fúria de alguns; desdém de outros; alguns momentos de repetição; alguns outros surpreendentes e outros até comoventes (o relato da psicanalista Annelie Stern sobre uma passagem no holocausto e a sua transmissão sobre a existência do inconsciente, constatada a posteriori); fomos brindados por duas passagens brilhantes:as conferências de Derrida e do Embaixador do Chile, Armando Uribe; momentos confusos de aparente caos e dissenso generalizado; muitas caras feias pela não leitura de todos os trabalhos; afãs de agarrar a idéia e deformá-la a uma instituição frankinsteniana em era de globalização; momentos informativos sobre a situação de como vai o drama do outro, suas questões, construções; momentos hiláricos; outros divertidos; outros patéticos; momentos sérios, interessantes e outros de concluir sobre a implicação necessária e o entusiasmo em continuar tentando...
E como disse Caterina Koltai na última mesa, como é demonstrável a dificuldade em se calar perante o texto do outro, escutar o outro ... ela fala num "exercício de desnarcizização"( * aliás impecável a participação de nossa colega, solicitei a Caty seu texto que ora cito, para colocá-lo em rede, ao que ela gentilmente enviou, e que então envio a todos em anexo neste e-mail)
E como trabalhou Derrida, a questão sobre a chegada do chegante, de receber o estrangeiro, na relação com o outro...
Terceiro - Prenúncios dos primeiros efeitos do encontro:
A importância de um "terceiro estado", que favoreça a cada um estar sempre mantendo abertas as questões sobre a condição da psicanálise no mundo, ou seja, em relação aos outros campos discursivos, a outras áreas do conhecimento, e trabalhar contextualizado ao que se passa no mundo dos mortais, a psicopatologia de nossa vida cotidiana dos tempos atuais, para além dos muros, bordas não só institucionais, como discursivas.
Dou um exemplo que me pareceu muito interessante, que apareceu grifado no texto de Derrida e é muito premente em nossos dias, não podemos ficar como macaquinhos de olhos, boca e ouvidos tapados frente a ordem da lei , da moral e da ética (a metáfora do macaquinho é minha), quando se está diante de questões tão pertinentes ao que a psicanálise um dia deixou de legado à cultura e que diz respeito ao sujeito do inconsciente, marcando o ser como desejante, causando uma ruptura com a barbárie. Não podemos nos furtar a esse respeito, quando se discute o declínio da lei no campo social, sob a justificativa de estarmos "derrapando" para o discurso da sociologia. Diferente disso, parece-me uma resposta que a psicanálise deve nessa réplica à questão que a cultura recoloca sobre os direitos humanos.
E agora lembrei-me novamente de Derrida, quando retoma o diálogo de Freud com Einstein, ou quando nos dizia, quase insistentemente em seu texto ( em articulações brilhantes que não consigo recuperar aqui, que comento justamente para que possamos buscá-las, resgatá-las), de que não devemos ter álibi...
Continuaria escrevendo ainda mais e mais, sobretudo dos efeitos causados, mas acredito que realmente esses vou verificar na retomada aos trabalhos, de volta para casa...
Só mais uma palavra, nesse momento de concluir, ainda que provisóriamente:
Houve uma discussão ferrenha na plenária final sobre os caminhos dos Estados Gerais.
Bem, este eu considero que foi um momento que teve de tudo que eu mencionei um pouco, e mais um pouco, mas considero extremamente interessante seu fim: René Major mantém a coerência dos propósitos iniciais, ou seja, deixando vazio o lugar que condensa a mestria, o mando, o poder, consegue assim manter-se descolado dessa cadeira, à medida em que a situa num lugar quanto função. E a dissolução prevista, a fim de que se relance sua continuidade a partir de um novo contexto de trabalho, num momento que já não será o mesmo. Por isso foi interessante não termos antecipado já as condições de seu relançamento ( tipo copa do mundo na definição da nova sede, ocupação de cargos, etc, etc,).
O que se garante assim é um tempo necessário para colhermos os efeitos do que tivemos até então, o que não nos impede de continuar trabalhando em nossas questões, alojados onde quer que estejamos, cada um, e é claro, elaborarmos cada um uma proposta de encaminhamento e fazer circular esse trabalho. A comissão organizadora que se dissolveu, se propôs ainda trabalhar neste período de transição.
A circulação de trabalhos e debate via internet não é originalidade desta proposta, bem sabemos inclusive de outras iniciativas também brilhantes por seu caráter inédito, sem prescindir de um rigor ético e de conteúdo. Justamente onde esta proposta dos Estados Gerais acrescenta, e aí eu reconheço como um dos principais méritos, é por forçar a dialetização entre o encontro virtual (tendência de alojamento do debate psicanalítico em nosso contemporâneo) com os efeitos ( imprescindíveis, a meu ver) de real, dos encontros em "carne e osso", onde o tempo de resposta no debate, os impedimentos, as dificuldades, precariedades do laço e possibilidades, desnudam-se a céu aberto (e para além dos contornos institucionais).
Talvez possamos pensar numa certa função de barragem ao apogeu do virtual, a necessidade de, de tempos em tempos lançarmos mão desses encontros como forma de um dispositivo, nos encontrarmos para tentar nos escutarmos, ao desafio de transmissão das principais questões que envolvem a prática da psicanálise, desde a formação do analista até às relações da psicanálise como área do conhecimento com os dramas do mundo. Um dispositivo em prol da sustentação da psicanálise na cultura, talvez de maneira mais madura que os estilhaços de explosões institucionais, ou impérios herméticos, como talvez sejamos vistos por onde a psicanálise esteja de fora, e vice-versa, por aqueles alijados do encontro com a mesma.
Não é demais salientar que criou-se um desejo de continuidade, de se poder relançar essa idéia, enfim de mantê-la em marcha.
E por fim, eu diria que foi surpreendente a qualidade, o rigor e a expressividade com que os trabalhos brasileiros se colocaram nesse encontro, marcados pelo entusiasmo e desejo de interlocução.
Adianto meu desejo de que possamos trazer para o Brasil um próximo encontro, talvez chamá-lo de Novos Estados da Psicanálise (interessante como a questão do nome pôde ser bem localizada, a respeito do que o nome de Estados Gerais refere um traço particular e importante para a história na França; podemos reinventar outro nome ou não, caso consideremos sobre as possibilidades universalizantes ou não, isso é para pensarmos...).
De qualquer maneira, onde quer que seja o local de um novo encontro, é a René Major, Elizabete Roudinesco e a todos aqueles que colaboraram mais intensamente neste trabalho, como é o caso de Maria Cristina Rios Magalhaes, aqui em São Paulo, que devemos ser gratos pela realização desta grande jornada.
Para além do lugar concretamente em que possa ser dar um próximo encontro, acredito que se tenha escavado um âmbito discursivo, um novo sítio discursivo com esta proposta tão importante quanto ousada, difícil e original.
É interessante como as novas configurações na vida, no laço, na cultura, propiciam a criação, a reinvenção de tratamentos que podemos dar ao real, que não cessa de se insinuar.
Um abraço a todos
Maria Teresa Martins Ramos Lamberte