Crisis Mundial

O impossível, numa manhã de quase outono

Gilson Iannini 1
gilsoniannini@zipmail.com.br

"Apetecia-lhes a vingança, e a vingança lhes deve ter parecido inalcançável" (J.L.Borges)

Nem a imaginação mais bem paga do planeta, a da indústria cinematográfica hollywoodiana, conseguiria produzir imagens tão chocantes como as ocorridas quando do ataque terrorista às torres gêmeas em Nova York. Fosse um filme, e o comentário geral seria: "que coisa mais improvável! impossível!". Mesmo o recentíssimo "I want to blow up Silicon Valley", lançado na última semana no Festival de cinema do Rio, não passa de um pálido simulacro do terror, que se vale de uma arma tão engenhosa quanto risível para tentar explodir o famoso vale que abriga as principais indústrias de informática americanas: um e-mail com um software anexado que conseguiria produzir uma pequena explosão em cada computador que o recebesse, promovendo, assim, um devastador efeito em cadeia. Mas mesmo em sua pálida imaginação, o filme foi capaz de antecipar pelo menos em um aspecto algo característico do terrorismo pós-moderno: não há mais necessidade de bombas, mísseis ou armas sofisticadas. Os próprios bens e serviços e sua livre circulação no mercado global podem se comportar como a criatura que se vira contra o criador: é o caso de notebooks e da internet no referido filme, estiletes e aviões comerciais, no referido atentado.

É o caráter de realizar o impossível que separa o real do ato terrorista da doravante empalidecida imaginação cinematográfica. A cena real goza de uma estética própria: uma temporalidade seca, uma fotografia bruta, uma sonoplastia e um movimento de câmera que nem os seguidores do Dogma de Triers poderiam realizar tão bem. É assustadora a ausência de efeitos especiais do tipo Spielberg e Cia. Nem mesmo a brutalidade de um Tarantino, com sua fotografia crua, poderia realizar algo parecido. A cena não carece nem mesmo da atmosfera dos filmes noir: o horizonte é uma ensolarada manhã de setembro. A brutalidade do real é assim: simplesmente assim. Impossível. Ela é.

Por outro lado, como Slavoj Zizek não se cansa de demonstrar, Hollywood nunca deixou de exorcizar seus fantasmas em películas de todos os gêneros. A idéia de um paraíso protegido, essa Ilha da Fantasia where your dreams come true, essa Disneyworld cotidiana que aglutina os ideais onde fantasia e realidade se fundem na esfera quase inatacável do consumo, mas que tem por contrapartida a desconfiança dissimulada por parte de seus atores de que aquele idílico modo de viver está constantemente ameaçado por seu fora, seu Exterior, foi objeto de diversos filmes a partir do final dos anos cinqüenta. Zizek enumera desde "Time out of Joint" até "Matrix", passando por "The Truman show", cujo personagem se descobre protagonista de um programa de TV veiculado 24 horas por dia: sua vida é um roteiro, sua cidade não passa de um set de filmagens. Esta experiência de "hiper-realidade", modus vivendi do capitalismo tardio, que se sustenta graças à ilusão de sua invulnerabilidade, muito se assemelha à experiência descrita por Freud do eu-prazer, que separa o bom-interior do mau-exterior, fundamento da posição paranóide.

O filme "Matrix" (1999) constitui o ápice dessa lógica na qual a realidade material que experimentamos não passa de realidade virtual, o que não deixa de ser uma verdade do capitalismo tardio, privado de inércia material 2. Quando o personagem descobre a irrealidade de seu mundo e se defronta com a brutalidade do real - a visão das ruínas de uma Chicago destruída – ele ouve de Morpheus: "bem-vindo ao deserto do real!". E então, como ocorreu na ensolarada manhã de quase outono em Nova York, o impossível se realiza, realizando a fantasia mais originária que povoou o imaginário social americano nas últimas décadas: o fim desse estado de insulamento, onde todo mal é relegado ao Exterior, ao Outro. Ora, continua Zizek, não é Hegel quem nos ensina que é exatamente nesse Exterior puro que "devemos reconhecer a versão destilada de nossa própria essência"? Estamos, pois, diante do deserto do real, e do silêncio de suas dunas, obedientes apenas aos caprichos do vento. Isto é, estamos diante do impossível. Mas as palavras se impõem. A explicação do acontecimento em termos de realização da fantasia originária é surpreendente e, ao mesmo tempo, precisa. Mas ela não basta, não apenas porque realizar uma fantasia é muito diferente de atravessá-la, mas também porque um evento desta magnitude é sempre refratário a explicações totalizantes.

O impossível e as estratégias discursivas

De um lado, temos o presidente G.W. Bush se esforçando para, desde seus primeiros discursos, identificar a América aos ideais de liberdade e democracia. O mecanismo se revela: forma-se o par liberdade-democracia, que se funda na figura da semelhança e, no mesmo golpe, mostra-se que esta semelhança é a propriedade cujo representante é o significante America. É preciso notar, no entanto, que toda semelhança pertence ao registro do imaginário, isto é, se funda na idéia de representação. É assim que a estratégia identifi catória de formação do campo do Mesmo se inicia 3. O atentado teria atingido o coração de toda sociedade que se queira herdeira da democracia e/ou parceira do liberalismo. Com efeito, a estratégia é eficaz. As televisões globais, abusando do recurso à comoção, à dramatização do acontecido, dão ao referido discurso as bases para o assentimento subjetivo do espectador. Uma retórica imagética, espécie de imaterialismo histórico fundado na dominância da imagem, cujo tom é predominantemente emotivista. Fomos atingidos – note-se a mudança para a primeira pessoa do plural – em nossa humanidade. O discurso mostra toda sua extensão. Ao terminar cada fala sua com o enunciado "God bless America" que, não por acaso estampa cada cédula de dollar, o presidente acentua o caráter santo de sua missão. É preciso se alinhar: ou se é pela America ou contra America, o que faz reverberar a escritura de Mateus: "Quem não está comigo, está contra mim" (Mt 12, 30). Bush não se furtou de se valer do termo "cruzada"! O corolário de tudo isso é a reiterada afirmação de que se trata da luta de o Bem contra o Mal! Ironia do destino ou efeito do imaginário?

Ao se revestir deste caráter religioso, mas também ao ressuscitar a fórmula cowboy: Wanted dead or alive!, impressiona como o discurso que se pretende o arauto dos princípios do Estado de direito se deixa absorver pelo que considera seu reverso. Retorno de uma con cepção de justiça sem julgamento, que se vale de uma retórica fundada na oposição pré-jurídica Bem X Mal. Não é difícil perceber que uma simples inversão dos sinais atribuídos a estes valores nos dá a fórmula da retórica do terror, também ela espelhada nessa mesma oposição.

É lugar comum dizer que os americanos deviam se perguntar o porquê de tamanha hostilidade dirigida contra eles: estaríamos, neste caso, no paradigma do sintoma como mensagem a ser decifrada. Todos sabem: eles são a maior potência do mundo e encarnam um certo ideal que ultrapassa suas fronteiras. Mais do que isso: constróem símbolos que sustentam e exibem, de maneira algo obscena, a conquista e a expansão virtualmente sem termo deste ideal. Um programa de universalização deste ideal é o que se chama de globalização. Esta universalização tem seus efeitos nefastos, sentidos como violência por aqueles que se sentem excluídos. Dentre estes, os mais argutos terão percebido as leis que sustentam o processo: exclusão e marginalização são variáveis previstas no cálculo. Ao destruir alguns destes símbolos, as ações terroristas não deixam de mostrar como se deixam tragar pelo discurso que pretendem denunciar. Ora, mas não é exatamente isso que Freud chamou de ideal? Um ideal é uma imagem que suscita uma reação ambivalente: amor e ódio. Freud o demonstrou exaustivamente, tomando o pai como referência. Um ideal é o fundamento, no que concerne a grupos ou organizações, de uma ilusão, além de ser também o fundamento da coesão grupal. Estamos diante de espelhos, mas também da fragilidade inerente a toda imagem. Mas então o problema se agrava: os grupos terroristas seriam representantes de quem? De que povo? De que nação ou Estado? Ou seriam representantes do próprio mal, em toda sua radicalidade, talvez banalidade, se quisermos nos valer dos termos de Kant e Arendt? Ou apenas representam a si mesmos?

O real, a disseminação

Se é verdade que um acontecimento tem efeitos nos três registros da experiência – Real, Simbólico e Imaginário – a análise precedente rapidamente se esgota. É preciso dar um passo a mais. Se os efeitos imaginários se manifestam de imediato, o mesmo não se pode dizer com relação ao simbólico. Um rearranjo simbólico é sempre algo a construir, e que dependerá de decisões que, em última instância, se apoiam em algo que é da ordem do indecidível puro. Precisam, primeiramente, ultrapassar a dimensão paliativa das soluções imaginárias. Do simbólico, derivam as propriedades de nomeação, e a possibilidade de romper com a duplicação especular das imagens: ações terroristas não representam nenhum povo, nenhuma nação, nenhum Estado. Isto é, o signo formado pelo par "terrorismo/jirad " é instável. Não apenas porque o terrorismo não representa a vontade islâmica, mas porque o paradigma da representação dificilmente se sustenta 4. Ações terroristas se autorizam por si mesmas. É claro que há sustentações de diversas ordens – econômica, logística, etc. — isto é, há parceiros, mas também os parceiros estão dissem inados. O perigo do terrorismo está nisso: ele não tem epicentro, ou seu centro é móvel, como as montanhas do deserto, como a volatilidade do capital. E então nos defrontamos com o Outro não mais no campo do imaginário, mas com o Outro real.

O Outro real é o silêncio. Nenhum grupo reivindica a autoria do atentado. Entre o Me smo e Outro a distância é infinita, e seu silêncio apavora. Se a estampa de Osama bin Laden parece tornar a vingança menos inalcançável, ela não deixa de ser apenas um ponto-de-estofo numa cadeia disseminada. O inimigo não tem rosto: ele é um puro nome (terror) cujo referente não se localiza. O que caracteriza o terror pós-moderno é a ausência de reivindicação de autoria, bem como sua disseminação. A estruturação do terrorismo em redes descentralizadas e móveis parece refletir os mais modernos modelos de administração de empresas, com seus executivos trabalhando em seus notebooks conectados à rede por celulares, e trabalhando de qualquer lugar do planeta, de sua casa, do avião, da areia da praia.

Numa guerra convencional, o inimigo tem um território, um exército. Não mudou apenas o inimigo, mudou o modelo: estamos na era da micro-guerra. Na guerra contra o terror, o inimigo está oculto, e o que o oculta não é o véu que encobre o rosto, mas a luz do sol em toda sua claridade. O inimigo está em toda parte, mas também em nenhum lugar. Mesmo que o alto comando militar americano insista em atacar alvos no território afegão, isso parece responder apenas ao anseio de suprir a demanda de uma opinião pública inflamada por discursos imaginários e que julga que a vingança suturaria sua ferida narcísica e lhes garantiria o retorno a um estado anterior de amparo e insulamento. Mas este retorno não é possível: o Exterior, o Outro parece, agora, habitar não apenas o subsolo, mas a superfície do sonho americano.

A ameaça terrorista, porque invisível, porque disseminada, porque instalada no seio da comunidade globalizada, pode atacar a qualquer momento, em qualquer ponto da rede. Ela tem a seu favor o fator surpresa, e a nossa propensão à paranóia. Boa parte dos terroristas não são homens escondidos nas montanhas ou agrupados em guetos. Eles circulam entre nós, como moeda corrente. Precisam estar inseridos na comunidade para se matricularem em cursos de aviação, para conseguirem embarcar em aeroportos internacionais, etc. São invisíveis, como a maioria dos habitantes do mundo global. Fina ironia só antevista pelas versões cinematográficas de "O homem invisível".

Em suma: a universalização de uma matriz civilizatória única, que ergue os símbolos representantes de sua expansão em cada novo território que conquista, fazendo com que os indivíduos substituam aos poucos uma parcela dos valores da pátria por valores pretensamente globais, tem como contraponto a disseminação de grupos terroristas avessos a este processo, instalados no coração de nossa sociedade, irreconhecíveis, também sem pátria, condicionados pelo mesmo discurso contra o qual pretendem lutar. Isto é, mesmo que nenhum nexo causal possa ser estabelecido, o contraponto, no sentido musical do termo, é inevitável: a expansão do discurso do capitalista, e da língua universal que ele pressupõe, faz surgir nos interstícios de sua estrutura grupos cuja voz não têm ressonância, e que só se fazem presentes por atos estrondosos e por um silêncio quase glacial.

Loucos?

O primeiro cuidado a observar deve ser o de evitar qualquer psicologização do evento. Uma ação desta magnitude, ainda que não possa ser descrita como um acontecimento - por carecer de um sujeito que assuma o risco do exercício de uma fidelidade que poderia desencadear um processo cuja verdade genérica culminaria num forçamento -, não deixa de tocar, por outro lado, no que podemos, ainda assim, chamar de verdade, mesmo que finita e incapaz de percorrer todo o trajeto que um Badiou lhe traça 5. Isto é, tal evento pode ser visto como algo que descompleta o saber de uma determinada situação – que filme poderia imaginar cenas que causassem tamanha perplexidade? – e que nos coloca diante de uma verdade. Uma verdade para a qual nossos saberes são insuficientes.

Dizer que terroristas são loucos é psicologizar uma situação para a qual nenhuma psi cologia ou saber psi está apta a dizer alguma coisa. A identificação com uma causa, mesmo a ponto do sacrifício da própria vida, não faz destes homens-bomba sujeitos que possam ser inseridos em classes diagnósticas. Eles não eram loucos, psicóticos, ou coisa que o valha. Eram indivíduos inseridos num determinado discurso, que faziam laço social com uma causa. Indivíduos que passariam por exames psicotécnicos ou avaliações psiquiátricas. Amados por suas famílias, respeitados pelos membros de seus grupos, que se sentiam amados por seu líder, e que até mesmo poderiam ser descritos pelos vizinhos como honestos, discretos, bons pagadores. Indivíduos ‘normais’, pelo menos até o momento em que praticam o ato. Indivíduos que, provavelmente, não apresentavam nenhum quadro psicopatológico ou de desajuste social.

Uma outra solução seria dizer que é louco o grupo a que eles pertencem, ou o discurso que sustenta seu laço. Neste caso, estaríamos ‘sociologizando’ o problema. Os terroristas sofreriam de uma espécie de psicose-em-grupo: fanáticos-religiosos, que perderam todos os laços com a realidade. Seriam grupos organizados em função de laços identificatórios com uma causa, envoltos numa nuvem de ilusão em torno de um determinado ideal, etc. Mas outra vez, isso não basta. Não apenas por que a causa terrorista suscita em muitos, mesmo em ocidentais, uma inconfessada aprovação, mas, outra vez, porque o real do acontecimento não pode ser plenamente assimilado na estrutura de nossos saberes.

Os eventos do dia 11 escapam até mesmo ao que entendemos por político: o terrorismo é a-político, na medida em que prefere o simples ato, sempre fechado em si mesmo, à palavra, que remete ao plural, ao infinito. Nada pode apagar o horror: nem os saberes psi, nem os saberes socioculturais, nem a filosofia ou a ciência política. Muito menos a guerra que assistimos pela TV, que apenas duplica a casa de espelhos. Qualquer dessas tentativas esbarra no real em jogo, real para o qual simplesmente não há saber disponível: o inimigo é sem rosto, mas também sem véu.

Notas

1 Psicanalista. Mestre em filosofia pela UFMG. Professor do Departamento de filosofia da UFOP.

2 ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. p. 6.

3 Cf. MILNER, J-C. Les noms indistincts. Paris: Seuil, 1983.

4 Sobre política e representação, Cf. BADIOU, A. "Oito observações sobre política", Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 53-57.

5 Badiou resume o "trajeto de uma verdade" em "Verdade e sujeito". Cf. BADIOU, A. op. cit. pp. 43-51.


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