Crisis Mundial |
"The evil": o outro inimigo?
(Apesar de tudo, uma aposta pela paz)
Malu Homem
"Je est un autre". Rimbaud já apontava a indefinível fronteira entre o eu e o outro, eternamente imbricados: o eu se dilui no outro e vice-versa. No entanto, parece que buscamos continuamente definir de forma clara os limites do eu e do outro. Onde termino eu e onde começa o outro? Quem sou eu e quem é o outro? Questões antigas, provavelmente insolúveis. Mas uma coisa é certa: o eu nasce do outro, se forma a partir e através do outro, usa o outro como fôrma e forma para traçar seus contornos. A criança imita o adulto, para tudo: para mastigar, para sorrir, para andar, para falar. A língua, uma das vias privilegiadas de comunicação com a alteridade, vem inteiramente do outro, sistema simbólico e "fascista" (como diria Barthes), que nos obriga a usar determinados códigos e regras. A indústria da moda se orgulha de ir buscar no submundo das metrópoles ou nos confins do oriente inspiração para seus ditames. A gente se veste de outro, aprende com o outro, tem curiosidade pelo outro, quer viajar por outras paragens.
O que acontece então que, em certos momentos da vida e da história, parece que infla o balão de gás da intolerância e tudo o que se quer é destruir o outro, eliminar o diferente; deixar fluir o ódio canalizado para o "inimigo", o mal, o demônio? Será que no fundo queremos a guerra, precisamos do confronto? Não deixa de ser surpreendente a facilidade com que nos ancoramos em uma lógica absolutamente simplista e infantil do gênero 'conto de fadas': o príncipe encantado versus a bruxa malvada, o herói bonzinho versus o vilão atroz. Como será que a gente realmente acredita em frases do tipo: "há que se combater o mal", "vamos encontrar o inimigo"? E conseguimos eleger o culpado da mais terrível maldade, do pior que a alma humana pode produzir, seja ele um "muçulmano terrorista louco" gênero Bin Laden ou um "revoltado americano da ultra-direita" como o do ataque terrorista em Oklahoma City (ou vingativos japoneses kamikases ou fundamentalistas de qualquer movimento religioso, racista ou sexista). Como se o mal estivesse fora e muito bem delineado: é aquele lá, de outro lugar, de outro país, de outra religião, de outra cultura - e, claro, um "louco".
Loucura é um dos nomes da diferença. Louco é todo aquele que faz algo que não se enquadra na minha forma de encarar a realidade. Porque a verdade é que é muito difícil aceitar a diferença, suportar que haja maneiras absolutamente diversas de ver o mundo e de se posicionar dentro dele e frente aos outros. Há muitas formas de conceituar o desconhecido e de criar deuses e rituais de adoração. Há muitas formas de governar e se organizar socialmente. Há muitas formas de amar e odiar e sofrer. Há muitas formas de falar e gesticular e de manter distâncias dos corpos das pessoas e de olhar e tocar esses corpos. Cada cultura tem seus códigos, mais ou menos explícitos, mais ou menos rígidos. A verdade é que no fundo é insuportável saber disso: que no fundo não há certezas absolutas sobre o que é a vida, como vivê-la, como conviver com o outro, como limitar o raio de ação entre eu e outro, entre os outros. É muito difícil se deparar com a verdade de que não há a verdade. Não há nenhum arauto da "democracia e liberdade" que dita ao mundo a maneira certa de viver e comercializar e enriquecer. E nem prosperar ou lucrar ou acumular capital é o objetivo da existência e uma verdade absoluta, por mais que atualmente tenhamos essa impressão, por mais que tenhamos comprado essa idéia.
De fato - e disso podemos ter certeza - eliminar o diferente é mais simples e mais simplista. A guerra é a saída mais fácil. Investir um terço do orçamento em armas parece um grande esforço, mas é um pensamento estreito que vai num sentido único: acumular munição para detonar o "inimigo". Como será possível ainda acreditar nesse personagem? Por que não se aprende com a história? Já não estaria na hora de amadurecer a capacidade de pensar (que, afinal nos é dada, mesmo que juntamente com a irracionalidade), de mudar para uma lógica mais complexa que ultrapassasse as dicotomias primárias de certo x errado, bom x mau, normal x louco? Certamente a situação do mundo árabe e dos eslavos e dos miseráveis e de todos nós globalizados é bem mais complicada do que a superfície das manchetes pode dar conta e ainda mais a superfície da "opinião pública" ou a impressão de um americano médio em paz com seu egocentrismo de cidadão de um império. O detalhe é que ele não está totalmente enganado, ele está somente confortável. E o conforto induz a erro e simplificação. Os fundamentalistas, de qualquer tipo, não estão totalmente errados. Mas fazem um esforço para organizar o caótico da vida e encaixá-la numa determinada escala de valor.
Só podemos esperar - e trabalhar em prol de - que a tragédia no coração desse império nos faça parar para olhar, de fato, o que está acontecendo no mundo. E para refletir sobre formas de barrar os excessos, de todos os lados (controlando os paraísos fiscais, os radicalismos dos excluídos, os abusos dos poderosos...). Que a ironia do destino - a destruição em massa no centro mais cosmopolita do mundo, literalmente caldeirão de inúmeras e diferentes culturas, New York onde todas as moedas, cores, cultos, estilos, línguas faladas e escritas circulam - nos sirva de alerta para, quem sabe, mudar nossa forma de pensar (e respeitar) a diferença, buscando resolver os conflitos, e não ingenuamente eliminá-los.
Triste conclusão: nem os americanos nem os árabes nem os protestantes nem os judeus nem os fundamentalistas nem os ateus nem os ricos nem os pobres nem os capitalistas nem o anti-globalização nem os homens nem as mulheres nem os gordos nem os magros nem os feios nem os bonitos nem os anciãos nem os jovens nem os cultos nem os iletrados nem os bons nem os maus sabem qual a forma certa de viver. Simplesmente porque ela não existe. Cabe a cada um e a todos nós buscar inventá-la, construí-la, devagar, sempre, cada dia. No risco da incerteza e da paz.
Malu Homem