Cine y psicoanálisis

Sobre "O quarto do pánico"
de David Fincher

Eugênia Correia Krutzen
echk@digizap.com.br

O quarto é uma possibilidade arquitetônica. Nem todas as casas dos humanos têm a conformação a que estamos habituados. Em outras épocas e culturas o que chamamos  sala principal pode ser também local para dormir, tendo sido gradativo, histórico, o processo de construção deste ambiente reservado à intimidade.

Já que não nascemos com as inscrições instintivas marcadas como os outros seres vivos, construimos nossas moradas de inúmeras formas, materiais e combinações. Mas esta variação não é produto apenas do acaso, a subjetividade estando associada ao modo como as casas são construídas e habitadas. Há mesmo estudos e psicotestes que relacionam um certo estilo de ser da pessoa ao desenho que ela faça de uma casa.

Sei de uma cidade nordestina onde a incidência de psicoses era tão alta, em certa época, que a maioria das casas  tinha um quarto nos fundos, o “quarto do doido”, onde ficava confinado o membro da família que adoecia “mentalmente”, e que deveria ser afastado por manter um certo pacto com o demoníaco, um certo risco de contaminação.

Hoje se compreende que a doença mental é produzida, mantida e transmitida socialmente; que é no espaço familiar que se constrói tanto a doença mental quanto as saídas mais sublimes para o enigma que nos caracteriza, que é o fato de termos – dizemos “ter”, como em uma posse – um espaço interior: as ciências, as artes, a arquitetura, são alternativas ao confinamento fusional das primeiras experiências, ainda no útero materno. A cultura é o conjunto das formas de transmutação do nosso susto frente ao exterior, construindo-o, o lado de fora, à nossa imagem e semelhança.

 Em “O estádio do espelho”, Lacan associava à formação da função do eu o “flagelo da balança” que marcaria o nível de neurose da cidade, sugerindo, portanto, uma co-relação inevitável: cidades que promovem cultura, agilizam circuitos para intercâmbios simbólicos, estas cidades transformam o “quarto do doido” em praça pública, concedendo outra forma ao sofrimento psíquico.

Ressaltando: trata-se aqui de uma leitura, dentre tantas outras possíveis, deste filme de David Fyncher.

As formas contemporâneas de classificação da doença mental falam em “panic atack” e não mais crises de ansiedade, desconsiderando a angústia como indicador “que não mente”, como afirma Lacan.

O circuito (familiar e social) que confina alguém em cômodos isolados da casa pode também propiciar as formações culturais mais sublimes, quando o bem ali restrito é resgatado e posto em circulação. O sintoma, diz Gerbase, é o que temos de mais interessante, nosso bem mais precioso. É preciso, então, superar uma concepção utilitarista que procura, antes de mais nada, curar, extirpando o sintoma, isolando-o de maneira a torná-lo inexpugnável inclusive ao próprio sujeito.

O primeiro muro a ser vencido, neste sentido, é a fusão mãe/filho. É preciso uma certa gradação, um refinamento na significação dada à entrada de mais alguém no quarto, desfazendo a díade. Daí a pertinência do título do filme, ao relacionar: a fusão mãe/filha, isoladas e confinadas em um espaço sem circulação; a dimensão pragmática da arquitetura e do urbanismo contemporâneo e o pânico, forma atual falar da angústia. Imagino, assim, que o quarto do pânico seja uma representação do sintoma. Para a psicanálise todos somos marcados por um sintoma, que não é uma coisa a ser  retirada de circulação, mas sim um  modo de ligarmos o interior ao exterior, o íntimo à alteridade. Uma casa, então, liga o dentro e o fora. O quarto, igualmente, pode ser um espaço de ligação entre a cama e o corredor, e por aí se vai.

Resumo do filme: três ladrões vão roubar um cofre escondido em uma casa dotada de um “quarto do pânico”, tipo de cômodo que vem sendo construído em apartamentos e casas de luxo, reservado para emergências, blindado, impossível de entrar. Os ladrões achavam que a casa estava ainda vazia, e se surpreendem quando encontram a nova proprietária e sua filha, que, ao vê-los pelo controle de segurança televisivo, escondem-se no tal quarto. Segue-se então a tentativa de fazê-las sair, seguida de incidentes onde dois deles entram no quarto enquanto a moça saira para pegar o celular e insulina para a filha diabética.

Contando melhor: o apartamento tinha três andares, sendo o quarto em questão no andar de cima. Aproveitando que os ladrões estavam nos andares de baixo, a moça aproveita para pegar o telefone celular (primeira saída) e depois, para pegar insulina para a filha doente (segunda). Lembre-se que, na mulher, estes são momentos privilegiados de negociação do seu sintoma: primeiro quando encontra um homem para amar e depois quando tem um filho.

Ela então chama o ex-marido (separado, morando com uma segunda mulher que dificulta o contato com a primeira família), que por sua vez é agredido, desencadeando uma briga dos ladrões entre si. O ladrão negro, entretanto, continua bom até o fim, chegando a matar o segundo ladrão.

O ator que faz o bom ladrão tem um olhar bem particular. Um dos seus olhos se mantém aberto, enquanto o outro quase se fecha; ele é ladrão mas ao mesmo tempo respeita as pessoas da casa, se recusa a ferir qualquer um, defende o ex-marido da moça e mata um dos parceiros para salvar a vida dela. Ele quer roubar o dinheiro mas ao mesmo tempo seu trabalho é proteger patrimônios, sendo funcionário da firma que constrói os quartos de pânico, conhecendo e mantendo o funcionamento do sistema de segurança. Ele é o mocinho e o bandido do filme ao mesmo tempo.

O quarto do pânico seria como um sintoma: lugar do tesouro mais precioso, aquilo que sobrevive à própria morte. Sendo feito de títulos do tesouro nacional, o conteúdo do cofre é, então, originário do exterior. Os papéis adquirem seu valor por serem representações do estado, do espaço público, mas são estes papéis que configuram o auge da intimidade, o segredo mais escondido, embaixo de documentos banais, por trás do fundo falso do cofre do quarto do pânico. Da mesma forma o sintoma nos vem de fora, dos ancestrais, da rua, dos circuitos que se movem à nossa revelia, mas somos nós que nos sentimos, uns mais outros menos, obrigados a defendê-lo, construindo a propriedade que nos mantém cativos de nós próprios.

Os ladrões podem ser associados aos serviços “psi”. No “Projeto de Psicologia para neurólogos” Freud propõe que o ser comporta uma abertura (portas e janelas), por onde chegam os estímulos em estado puro, anteriores a qualquer nome ou significação: sistema “phi”. O sistema “ômega”, por sua vez, corresponde ao lugar de chegada, ao que se denomina “consciência”. Nesta analogia, ômega correponderia à rua, ao vizinho incapaz de receber os apelos de s-o-s, os gritos desesperados. Consciência/exterior a quem a moça não ousa deixar evidente (na cena na porta com o policial) o perigo que está correndo sua filha/tesouro/patrimônio, tudo junto e preso no quarto do pânico. O sistema “psi” corresponderia ao interior da casa, os corredores, salas e demais cômodos diferentes do “de pânico”: é o espaço da significação, anterior à cultura, passagem obrigatório para chegar até lá. Assim, são os ladrões que circulando pela casa dão a notícia de que existe alguma coisa no cômodo em questão. Antes dos ladrões não havia nada, o quarto era um lugar desabitado e indiferente, o tesouro não existia como tal. É o sistema “psi”, encarregado da circulação e significação, que mostra nas telas de televisões do sistema de segurança as cenas ocorrendo em cômodos e andares diferentes, como em um processo de análise quando se pode ter acesso a lembranças em camadas diferentes da memória, possibilitando percepções antes impossíveis.

O quarto é um quarto em relação aos três andares e aos três ladrões: ficava no terceiro andar mas tinha sistema de energia próprio, telefone, suprimentos independentes do restante da casa. O quarto elemento, amarrando os três registros, real, simbólico e imaginário, também conserva um tipo de patamar especifico que para Lacan é o sintoma.

Assim há elementos reais, outros simbólicos e outros imaginários, todos amarrados em função do quarto. Os moradores (inclusive o ex-proprietário já falecido), os vizinhos que reclamam do barulho e da luz, incapazes de reconhecer que são sinais em código Morse, as instituições policiais, o agente imobiliário, o ex-marido e a “modelo de segunda”, todos participam da constituição, reprodução, transmissão e proteção do sintoma. Ao sujeito – a personagem de Jodie Foster -  a ela cabe proteger seu sintoma, até mais que à própria vida. A filha contribui com sua seringa, metáfora das doenças familiarmente construídas, para conservar o sintoma em seu lugar.

A diabete, doença hereditariamente transmitida, faz eco à herança que o ladrão (o do cabelo transado) não queria dividir.

O sintoma é produto de uma transmissão mas este mecanismo ultrapassa de muito o circuito genético. A herança não era suficiente para o ladrão-herdeiro, que se sentia responsável pela permanência dos valores no quarto do pânico. Teria sido dele a idéia de fazer construir o quarto, e  deixar os títulos guardados no cofre. O ladrão-herdeiro justifica assim seu direito a ter um “a mais” em relação aos outros herdeiros: por ter sido dele a idéia de construir o quarto; por ter encorajado o ex-proprietário a guardar ali os valores, esta autoria – esta maneira particular de recortar a herança e deixá-la protegida daquela forma - é que, supostamente, justificaria o direito de receber mais que os outros. Mais ainda também que os outros ladrões que então o matam, por suspeitarem que seriam mortos por ele, após ser pega a herança.

O quarto corresponde a esse “a mais” que singulariza uma autoria e segue irredutível à transmissão puramente simbólica da herança genética. E então, será que foi justamente por deixar escapar este excesso – ser herdeiro e ao mesmo tempo autor  do quarto - que ele teve que morrer?

Depois do susto, tudo acaba bem. É curiosa a expressão da moça, no final, quando são feitos closes do rosto dela e do bom ladrão, situados na tela na mesma posição. Neste momento o ladrão tem os braços e olhos bem abertos, e distribui ao vento, ao espaço público, o tão protegido tesouro de papel.

Quem é libertado, em última instância, é o próprio sintoma. O sujeito é “curado” por acréscimo, conseqüência.

Nas cenas finais, cicatrizes expostas ao sol do parque, a moça junto à filha, continua procurando imóvel nos classificados, mas já não precisam mais de tanto espaço.

Natal, junho/2002.


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