Número 143 - Março 2001
Psicanálise aplicada a Odontología
Sumário
Editorial
Artigos
- Marcos Chedid Abel, Verdade e convicção em psicanálise
- Leonardo Pinto Almeida, Angústia e repetição, um ensaio acerca da clínica psicanalítica
- Elisabeth Bittencourt , Se entregar de corpo e alma, ou de corpo com alma?
- Marilou Manzini-Covre, Tempo de ser: do viver submisso ao rumo do viver criativo
- Luis Vicente Miguelez, Saber jugar: el don del analista
Clinicando
- Fátima Cristina Monteiro de Oliveira, Psicanálise aplicada à odontologia e odontopediatria
Panorama
- Valentim Gentil, Por uma reforma mais psiquiátrica
Clínica do Social
- Eugênia Correia-Krutzen, A pobreza como álibi
Livros em destaque
- Rubens Marcelo Volich, Portos. Seguros? Sobre Política e psicanálise. O estrangeiro, de Caterina Koltai
Congressos, conferências e palestras
Cursos, seminários e grupos de estudo
Notícias
Novidades bibliográficas nacionais
Novidades bibliográficas estrangeiras
Autores deste número
Normas para publicação
O pesquisar e o refletir sobre a posição ocupada pelo psicoterapeuta - quer seja psicanalista, psiquiatra clínico (expressão empregada por German Berrios), psicólogo clínico, fonoaudiólogo ou enfermeiro psiquiátrico - na sociedade contemporânea leva-nos a afirmar e reafirmar a natureza psicopatológica do humano caracterizado por manifestar constantemente discurso sobre o pathos psíquico, ou seja, palavra sobre aquilo que, tendo estatuto de força, submete fazendo sofrer. Além disso, como temos dito e escrito, de pathos deriva-se "paixão" e "passividade", ou seja, tudo o que faz ou que acontece de novo, do ponto de vista daquele ao qual acontece. Nesse sentido, quando pathos ocorre, algo da ordem do excesso, da desmesura, se põe em marcha sem que o eu possa se assenhorear desse acontecimento, a não ser como paciente.
A psicoterapia vive graças a seus pacientes.
Assim, foi devido a seus pacientes, inclusive tomando-se como paciente, que Freud formulou a hipótese do inconsciente e elaborou a psicanálise, um saber, ao mesmo tempo, psicoterapêutico e psicopatológico. Foi tratando pacientes que Pinel, Morel, Esquirol, Falret, Griesinger, Charcot, Janet, Clérambault, Kraft-Ebbing, Kraepelin, Bleuler, Binswanger, Jung etc. desenvolveram discursos sobre o sofrimento psíquico, isto é, psicopatologias. Psicoterapia e psicopatologia não se separam já que aquela se empenha na construção de uma experiência a partir do vivido, e esta é o discurso a respeito do vivido no processo de construção daquela experiência.
Afastar-se desta tradição significa modificar posições tanto da psicanálise como da psiquiatria clínica, tanto da psicologia clínica como da fonoaudiologia e da enfermagem psiquiátrica já que estes saberes foram construídos tratando o sofrimento humano nessa perspectiva.
A natureza psicoterapêutica e psicopatológica da psicanálise e da psiquiatria clínica, da psicologia clínica, da fonoaudiologia e da enfermagem psiquiátrica afastam-nas da posição ideológica em relação à subjetividade.
Se a psicoterapia e a psicopatologia se ocupam do sujeito, do paciente, do submetido pelo pathos é porque sustentam posição segundo a qual a subjetividade é um estorvo. A subjetividade faz sofrer, é primitiva, infantil e neurótica e, por isso, precisa receber tratamento, ou seja, precisa deixar de ser só vivida. Uma das características da subjetividade é a de admitir a possibilidade da transformação da biografia em história. Quando a biografia se transforma em história, abrem-se diferentes caminhos, pois há o reconhecimento do vivido como experiência. Quando, por exemplo, Freud, numa entrevista concedida em 1926, a George Sylvester Viereck, e publicada no Journal of Psychology, em 1957, afirma "Minha língua é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu". Ele abre para si a possibilidade de reconhecer que o vivido não é crônico, desde que se permita a ocorrência da psicoterapia. A cronificação do vivido pela recusa da psicoterapia torna o humano eterno pas-si-ente (atenção revisão, esta palavra é escrita assim, com dois esses), ou seja, um ente em si e para si passivo e submetido a um sofrimento sem qualquer possibilidade histórica.
A ciência contemporânea, eminentemente tecnológica, está apaixonadamente empenhada na eliminação da subjetividade e já sabe que, para isso, é necessário produzir mutação na espécie. Há aproximadamente 20 anos não se produz mais pesquisa pura, ou seja, pesquisa empenhada no avanço do conhecimento desvinculado da tecnologia. A pesquisa pura é muito dispendiosa e sem qualquer utilidade. Os mais avançados centros universitários do mundo, nos Estados Unidos e na Europa, foram se associando com a indústria e com o Estado e passaram a se dedicar à pesquisa útil, ou seja, tecnológica. Esta, por sua vez, está voltada, em curto prazo, para a redução do campo de manifestação da subjetividade, ou seja, sua inibição e, em longo prazo, para a mutação da espécie humana visando eliminar qualquer traço subjetivo. O humano está fadado a ser, assim, uma outra espécie, tal como ocorreu antes de sua origem.
O sintoma é manifestação da subjetividade. O humano é sintomático enquanto for espécie subjetiva. Enquanto a psicanálise, a psiquiatria clínica, a psicologia clínica, a fonoaudiologia e a enfermagem psiquiátrica se empenharam em diferenciar o normal do patológico, incorreram numa interminável discussão ideológica. O normal acabou se transformando em zona estatística sem sentido para o método clínico. Percebendo isso, e reconhecendo os avanços da indústria na produção de moléculas inteligentes, alguns psiquiatras decidiram que a subjetividade é o sintoma e se este for inibido aquela deixa de se manifestar. Enquanto a espécie não sofrer mutação eliminadora da subjetividade, vamos remediando o estorvo com a inibição química do sintoma e ignorando sua natureza subjetiva transformando o paciente e todosnós em objeto. Mas, para que esse procedimento tenha alguma eficácia, é necessário terminar com a psicopatologia, ou seja, com um logos a respeito do pathos psíquico e com a psicoterapia, ou seja, o tratamento do pathos pelo logos visando a transformação do vivido em experiência.
A operação exterminadora da psicoterapia e da psicopatologia teve início por volta de 1980, exatamente quando se inicia, também, a liquidação da pesquisa científica pura, e vai se realizando um processo de eliminação do logos a respeito do sofrimento psíquico, ou seja, vai se promovendo o fim da psicopatologia. Esta iniciativa liderada pela Associação Médica Americana e, em menor grau, pela Organização Mundial da Saúde, produz um discurso estandartizado dos sintomas organizando-os em transtornos e estabelecendo procedimentos-padrões diante das manifestações sintomáticas agora catalogadas e classificadas. Silenciou-se, assim, o psicopatológico e, conseqüentemente, o psicoterapêutico passa a ser desnecessário. Basta ministrar moléculas inteligentes para transtornos reconhecidos pelo procedimento-padrão. A esse procedimento-padrão alguns denominam de "moderna psiquiatria". Os próprios psicanalistas, estorvados pela subjetividade, vêm se aproximando dessa abordagem, aderindo ao procedimento-padrão e à administração de moléculas inteligentes e abandonando a posição psicoterapêutica e psicopatológica, transformando-se em analistas do normal.
Esse tipo de procedimento está produzindo mutação na psicanálise, na psiquiatria clínica, na psicologia clínica, na fonoaudiologia, na enfermagem psiquiátrica e no paciente.
Os psiquiatras clínicos, deixando de lado a psicoterapia e a psicopatologia, abandonam sua rica e longa tradição e transformam-se em agentes farmacêuticos. Prosseguindo nesta tendência, terminarão como empregados desabonados de supermercados, vendendo moléculas inteligentes, obedecendo rigorosamente, vale dizer, cegamente, os procedimentos postulados pelas versões mais recentes do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais e do CID-10. Além disso, como se trata, agora, de procedimento-padrão, qualquer pessoa que saiba ler e escrever pode receitar e ministrar essas moléculas. Assim, o que já ocorre no âmbito da medicina, onde qualquer especialista - pediatra, cirurgião etc e até dentistas - receita moléculas inteligentes, psicanalistas, psicólogos clínicos, fonoaudiólogos, enfermeiros psiquiátricos, assistentes sociais etc estão plenamente aptos a realizarem essa tarefa.
Para que servirão, então, os psiquiatras clínicos? Uma possível saída honrosa para eles seria a de se transformarem em pesquisadores, ou seja, agentes da indústria de testes clínicos (sobre isso, consultar o artigo de Mônica Teixeira e Erney Plessmann de Camargo a ser publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. IV, no 1, março de 2001). Mas, para isso ocorrer, é necessáriouma reforma mais psiquiátrica, com a criação de hospitais onde pacientes fiquem confinados e se submetam obedientemente aos medicamentos em testes. De certa forma, isso já vem ocorrendo em hospitais-escola onde médicos dispõem de pacientes para realizarem suas pesquisas sem qualquer outra preocupação.
Os psicanalistas, por sua vez, também vêm abandonando a tradição psicoterapêutica e psicopatológica que os colocava na incômoda posição de serem objeto de transferências subjetivas, isto é, de estorvantes transferências. Bom é ser psicanalista da civilização onde o humano sempre mal está. A civilização não transfere, não livre associa, enfim, só perturba porque o humano nela mal está. Mas melhor mesmo é ser psicanalista didata e se empenhar na tarefa bem-sucedida a priori de ter uma clínica de candidatos, ou seja, de normais.
Por último, mas não menos importante, como não cabe ao paciente a palavra provocada pelo sofrimento, por falta de psicoterapia e de psicopatologia, a solução é ser reduzido a objeto consumidor de moléculas inteligentes. O paciente vai, assim, se transformando num drogadependente.
Nenhum médico tem o direito de deixar sofrer alguém. Melhor, então, tomar moléculas inteligentes do que sofrer, dizem alguns psiquiatras. De fato, o sofrimento, sempre excessivo, pode cronificar e até matar o paciente. Mas dopá-lo com moléculas inteligentes não faz passar o sofrimento. Produz, ao contrário, uma população de drogadependentes incapazes de ação psicoterapêutica, incapazes de constituir uma experiência a partir do vivido. A drogadependência generalizada e legitimada pelo saber científico não só é um transtorno, um novo quadro sintomático. É, também, ação política instauradora de um conformismo, de uma insensibilização que se e quando tratados impulsiona o humano ao pensamento e a ações transformadoras da realidade.
Os avanços na psicoterapia e na psicopatologia não podem ignorar as moléculas inteligentes. Estas, per se, não são panacéia. Mas podem e devem fazer parte dos recursos psicoterapêuticos disponíveis. Em outras palavras, uma política de saúde mental não deve ignorar as diferentes posições e os diversos saberes à disposição do tratamento. Entretanto, como esses são diversos e múltiplos, a possibilidade mais dinâmica de organização da saúde mental seria a de redes psicoterapêuticas, verdadeiros dispositivos clínicos, capazes de, como sistema aberto, proporcionar condições de tratamento e cura. Só assim poderá ser abandonado o ultrapassado modelo assistencial brasileiro de saúde mental que é hospitalocêntrico, manicomial e drogadependente.
Manoel Tosta Berlinck e Moisés Rodrigues da Silva Júnior
Pulsional Revista de Psicanálise
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