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Número 25 - Diciembre 2009

Do corpo à subjetividade:
um olhar psicanalítico sobre a doença de Alzheimer

Neuma Barros
EPSI – Espaço Psicanalítico (João Pessoa/PB, Brasil)
neumabarros@epsi.com.br

Edilene Queiroz
UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco (Recife/PE, Brasil)
edilenequeiroz@uol.com.br

 

Introdução: A história do texto é uma história em rede, envolvendo diferentes sujeitos.

Objetivos: Explorar e fertilizar a compreensão de achados clínicos neurológicos à luz da psicanálise, na idéia de alcançar as mudanças psíquicas que podem estar associadas à doença de Alzheimer.

Metodologia: Transitando entre as interfaces corpo e psiquismo, busca-se desenvolver reflexões psicanalíticas sobre o fenômeno demencial inerente à doença.

Discussão: O processo da doença desenha uma topografia própria. A tendência à composição, ligada ao trabalho do eu, se desorganiza.

Conclusões: Eis, a proposição a que conduzem as reflexões: o fenômeno demencial desvela facetas da subjetividade. A função psíquica que empreende elaboração secundária se enfraquece, o trabalho de produzir condensações, de estabelecer relações, processando traduções, não mais se sustenta. Um estrangeiro ressurge dos labirintos do psiquismo, um sujeito desconhecido se mostra, movido por rompantes libidinais e de intensa agressividade.

Palavras-chave: Psicanálise, Alzheimer, Subjetividade

 

De início, é importante que nos reportemos aos primeiros tempos deste trabalho. Trata-se de uma história em rede, movida por inquietações que nasceram em diferentes lugares, envolvendo diferentes sujeitos. De um lado, alguém muito próximo inesperadamente acometido pelo fenômeno da demência e que passa a viver entre flashes de memória, numa posição que assinala desordem no funcionamento psíquico. De outro, a autora deste texto, uma psicanalista porta-voz daqueles que, juntamente com ela, estavam afetivamente envolvidos naquela história de fios rompidos. Para além desses lugares, uma neurologista que fora procurada como que para iluminar aquele enredo de esquecimentos e apaziguar a estranheza e o sofrimento com o descompasso impingido por aquele processo demencial. Com ela, uma hipótese de trabalho no bolso do jaleco, à espera de verificação. Por fim, uma colega psicanalista, coordenadora da pesquisa Por uma Metapsicologia do Corpo, projeto maior no seio da qual as reflexões do presente trabalho tomaram forma e se tornaram texto. Juntas apuramos as idéias aqui apresentadas.

A psicopatologia se apresentou imperiosa, impactante, desvelando as ligações tão próximas entre psiquismo e soma. Nesse contexto, nasceu um trabalho em parceria. Buscava-se uma possibilidade de diálogo da clínica médica com a teoria psicanalítica, fertilizando a compreensão de achados clínicos neurológicos à luz da psicanálise. O estudo acabou se juntando aos de outros colegas, fazendo nascer um grupo de pesquisa – Corpo, pulsão e linguagem, junto ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI.

Não me dei conta, ali, que me encontrava transferencialmente movida e intensamente implicada pelo objeto de estudo. Desavisadamente, fui levada a tentar descobrir os meandros da articulação silente corpo biológico-corpo psíquico. Mesmo assim, no entanto, prudência e rigor no itinerário, eis o que se colocava de antemão e desde sempre, posto que eu estava a me aproximar de uma área entre, envolvendo neurologia e psicanálise, corpo e psiquismo, uma seara delicada principalmente por não me encontrar envolvida com a escuta clínica de pacientes acometidos pela doença de Alzheimer. Assim é que algumas inquietações se insinuaram sem que eu conseguisse formulá-las, quando, por fim, pude formulá-las e elaborá-las a partir das reflexões de Edilene Queiroz, além ainda das contribuições de Maria Helena Fernandes e Ronaldo Monte, em discussões que tiveram lugar numa jornada interna do citado grupo de pesquisa.

Movida pela transferência, me pus a transitar num terreno movediço: de um lado, uma tarefa no mínimo arriscada pra quem não domina a matéria envolvendo as ligações entre o somático e o psíquico; de outro, para um empreendimento de tal monta, o trabalho seria inviável nos limites de um estudo que se propunha apenas à escrita de alguns artigos.

Poderia dizer que, neste contexto, eu assumia a posição de "pesquisadora participante", porquanto, uma posição que, de per si, faz exigência de trabalho. Ao me por em busca de apreensão da perturbadora estranheza que paira no processo demencial, no movimento do estudo e da própria escrita, eu tentava me apropriar da experiência, atribuir-lhe sentido, articulando experiência e teoria como possibilidade de construir um saber.

Eis como se desenhou, portanto, este trabalho. Fui movido pela idéia de alcançar as mudanças psíquicas que podem estar associadas ao fenômeno demencial da doença de Alzheimer. De antemão, gostaria de deixar claro: não estou tentando explicar a doença de Alzheimer com o instrumental psicanalítico. Estou, sim, defendendo a idéia de que a Psicanálise pode ter algo a dizer sobre as vicissitudes subjetivas que marcam o processo demencial inerente à doença.

Desde os primórdios da psicanálise, Freud concebia um corpo psicanalítico e suas teorizações possibilitaram realçar que "o somático, isto é, o conjunto das funções orgânicas em movimento, habita um corpo que é também o lugar de realização de um desejo inconsciente." (Fernandes, 2003, p.34). O corpo é, pois, lugar de inscrição do somático e do psíquico. Nesse sentido, concordamos com Paul-Laurent Assoun, quando afirma que uma das características do inconsciente seja, "o efeito plástico ativo do ato inconsciente sobre os processos somáticos" (Assoun, 1977, p.25). Para Assoun, o sintoma é presença física do conflito, dando o corpo testemunho físico de um certo "dessimbolismo" na medida em que há uma "incidência física do inconsciente". O desejo "se deixa ‘ver’ no e pelo corpo."

Lembramos também que nos primórdios da psicanálise Sandor Ferenczi, um dos autores que mais se interessava pelo tema das demências numa perspectiva psicanalítica, ocupava-se em compreender como se opera a relação entre doença física e estados psíquicos. Em seu artigo "A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral" (1917), onde aborda a doença resultante de lesão cerebral e os sintomas psíquicos associados, assinala que o cérebro, mais que qualquer outro órgão, é depositário de um "investimento e uma estima particularmente importante por parte da libido narcisista", posto que é o órgão por excelência das funções do eu e do princípio de realidade. (Ferenczi, 1993, p.153)

Chama nossa atenção o fato de que, na doença de Alzheimer o cérebro degenera, produzindo placas senis, gerando demência. As lesões neuronais no âmbito do córtex cerebral produzem déficit de memória e, por conseqüência, comprometimento do pensamento e da atenção. Em decorrência, surge um sujeito desconhecido, com rompantes libidinais ou de intensa hostilidade e, numa aproximação preliminar da história de vida desses pacientes, encontramos elos que talvez possam lançar luz sobre essas alterações subjetivas: esses comportamentos parecem desvelar desejos/afetos hostis dinamicamente suprimidos, que por muito tempo foram exitosamente mantidos longe da consciência.

A memória é condição de pensamento, de simbolismo organizado. Memória e esquecimento andam juntos. Com o advento do processo, diante da diminuição das funções da memória, da percepção, da atenção, do pensamento, o eu, pólo do aparelho psíquico voltado para a realidade e a percepção, instância encarregada de receber informações do exterior e de compará-las com os traços mnêmicos (conforme nos ensinou Freud no "Projeto para uma Psicologia Científica", de 1895) sofre alterações em seu funcionamento,

O trabalho do eu, o qual se situa na base da atividade do pensar e que faz gerar conhecimento fundamentado em juízo de valor, acaba sendo afetado. Se antes, enquanto sede das defesas, se ocupava, em sua missão pacificadora, de aplacar moções pulsionais, agora, ante as possibilidades limitadas de regular as ligações do aparelho psíquico, vê-se enfraquecido para exercer sua ação repressora, resultando daí a irrupção de conteúdos recalcados.

As vicissitudes advindas de um certo desmantelamento subjetivo e afrouxamento do funcionamento das instâncias psíquicas na doença de Alzheimer ganham compreensão a partir das elaborações da psicanalista italiana Piera Aulagnier, cujas idéias sobre o tempo, a memória e a constituição histórica do eu são iluminadoras, conforme remete Delia C. Goldfarb, no seu estudo sobre as demências. Para Aulagnier, é através do corpo que experiências passadas, aquém do memorizável, ganham ligação com emoções atuais, podendo, assim, ter acesso ao espaço do eu (Goldfarb, 2004, p.123-4). Ao abordar a questão da constituição histórica do eu, a história vivencial é articulada com a questão da formação do eu e do sujeito. Assim, vemos o paciente de Alzheimer – nas palavras de D. Goldfarb – "encontrando algo que não procura", ou seja, a emoção que irrompe (Einfall) sem qualquer ligação histórica aparente.

Além de alterações nas funções egóicas, como não poderia deixar de ser, o supereu – instância representante da "realidade", que encarna a lei e exerce papel de juiz ou censor junto ao eu –, também é afetado em seu funcionamento no processo demencial. Em decorrência, a censura afrouxa, não mais operando segundo os impeditivos de outrora.

A doença de Alzheimer faz emergir um estranho, exposto a algo diante do qual se vê desamparado, sem recursos para integrar sua experiência. O sujeito é remetido às filigranas do tempo e de sua história, ao que está nos bastidores de sua vida. A memória se perde, as palavras tornam-se fugidias, a comunicação se embota.

O processo da doença vai desenhar uma topografia errante. À medida que o estranho avança, vai revelando, de forma regressiva, o caminho feito pelas inscrições na constituição do sujeito psíquico. O eu, uma organização que se constituiu outrora em meio ao caos, à dispersão, por efeito de ligações, aos poucos, vai cedendo espaço a tal processo regressivo, revelando a céu aberto as estruturas primitivas de sua formação.

Ao por abaixo seus métodos de defesa, o eu se altera e sofre seu efeito como contragolpe. Sua modificação não é senão o resultado desse processo. Na doença de Alzheimer, o eu não mais investe para cumprir sua missão necessária – e ao mesmo tempo inviável – de arbitrar as exigências do isso. A demência se move em meio a traços mnêmicos desconexos que não formam um quadro inteligível, como se desaparecessem certas partes do eu. A pré-consciência, consciência secundária do pensamento, derrapa, desmantelando o funcionamento egóico, lançando o sujeito progressiva e ao mesmo tempo regressivamente em posições arcaicas, fazendo-o confundir suas relações objetais.

Já nas origens da Psicanálise, o esquecimento e suas relações com o recordar era uma questão em xeque, tornando-se o eixo fundamental da teoria do recalque. Para Freud, é importante lembrar, o recalque originário funda as barreiras entre os sistemas psíquicos. É neste momento que se funda também o estranho como produto de tudo o que foi rejeitado na constituição do eu. Fora das fronteiras do eu, esse estranho insiste em romper a barreira do recalque para se integrar à organização do sistema egóico.

O estranho não é nada novo ou alheio, porém algo há muito estabelecido na mente. O estranho é algo secretamente familiar, que foi submetido ao recalque e depois voltou. Alienou-se, manteve-se afastado, separado, transformado em estranho-alheio através do processo de recalque, como Freud revelou em seu artigo "O estranho".

A vida, desde seus inícios – é uma tentativa de assimilar o estranho, o estrangeiro, tornando-o familiar. Eis o fio que marca seu percurso. Na demência, contudo, há um ‘sem fundo’ que não alcança tradução, um nunca se sentir "em casa", quando a inquietante estranheza não mais pode ser apropriada. Ai retorna o que outrora fora estranho, estranho que é familiar e que somente se alienou. A estranheza prepondera, vira presença familiar. Entre o estranho e o familiar, surge um sujeito incerto. Perdido e despojado de suas referências, é jogado à estrangeiridade de si mesmo, ao duplo de si próprio. As imagens de si e do outro não mais encontram a imagem da memória, a vida desliza, em descompasso.

Freud revelou: máquina de condensar, compor, organizar, aparelho de associar, traduzir, interpretar, eis o que somos. Sujeitos compelidos a agir e pensar, movidos pela alteridade de um circuito que pressiona à ação em uma certa direção. Freud nos mostrou por exemplo, que quando nos vemos confrontados com afetos apartados, com representações segregadas, inconciliáveis, somos compelidos a incluí-los numa rede simbolizante, movidos por uma espécie de "compulsão a vincular, a associar". Freud defendia que "nos sonhos predomina a compulsão a associar, que sem dúvida também domina primordialmente a vida psíquica em geral. Ao que parece, dois investimentos coexistentes precisam pôr-se em mútua conexão. " (Freud, 1895) Freud também dá exemplos do predomínio dessa compulsão na vida de vigília.

Eis, em suma, a proposição a que nos levam nossas reflexões sobre a doença de Alzheimer: a compulsão à composição, a tendência à organização, muito ligada ao trabalho do eu, de Eros, de fazer ligações, de criar redes de simbolização, se desorganiza. Ao mesmo tempo em que as memórias se dissolvem, a composição vai se perdendo, se dissociando. As histórias se sucedem, perdidas no tempo. Há um retorno à simultaneidade dos primeiros tempos da formação do aparelho psíquico, quando não existe ainda uma relação de causa e efeito.

Um estrangeiro ressurge dos labirintos do psiquismo: a função psíquica que trabalha empreendendo elaboração secundária se enfraquece; a compulsão à composição, o trabalho de produzir condensações, de pôr ordem, estabelecer relações, organizar tramas inteligíveis, processando traduções, não mais se sustenta. A cada regressão, o estranho interno, encoberto pelo recalque, aflora. Algo é encontrado sem se procurar, intensidades perdidas ressurgem, o condensado de representações que compõem a história do sujeito se decompõe, os alicerces identificatórios cedem. Um sujeito desconhecido se mostra, movido por rompantes libidinais e de intensa agressividade. O horizonte do ser se esmaece, a "tarefa de ser" perde a âncora identitária, o sujeito perde o continuum da esperança, perde-se de si mesmo e de sua morada, não mais habita em si.

O paciente de Alzheimer move-se na trilha movediça do esquecimento mais radical. Um não lugar e um não tempo, nem memória e nem história, eis a crônica de uma morte anunciada, quando os elos da memória e da história se rompem. Um caminho sem volta, que leva à descontinuidade e ao descentramento de si, da existência, do destino.

Notas

* Este texto foi elaborado no contexto do projeto de pesquisa "Corpo, pulsão e linguagem", do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI – Espaço Psicanalítico, em colaboração com o Laboratório de Psicopathologia Fundamental e Psicanálise da UNICAP/PE. O trabalho partiu da hipótese da neurologista Silvia Laurentino, segundo a qual o eu e supereu se desorganizam em decorrência da doença de Alzheimer. Meus agradecimentos à Silvia, que a mim confiou o desafio desta reflexão, à Edilene Queiroz, que comigo se debruçou sobre a complexidade do tema, e também aos psicanalistas Maria Helena Fernandes e Ronaldo Monte, pelas imprescindíveis contribuições

Referências principais

ASSOUN, Paul-Laurent (1977) Lecciones psicoanalíticas sobre cuerpo y sintonía. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión.

Aulagnier, Piera (2001) "Nascimento de um Corpo, Origem de uma História." In: J. McDougall e alii, Corpo e História. São Paulo, Casa do Psicólogo.

BARROS, Neuma; CAMINHA, Iraquitan de Oliveira & ALMEIDA, Ronaldo Monte (org., 2009) Narrativas do corpo. Textos de psicopatologia fundamental. João Pessoa, Editora Universitária.

FERENCZI, Sandor (1993) A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral. [1917]. Obras Completas, vol. 3. São Paulo, Martins Fontes.

FERNANDES, Maria Helena (2003) Corpo. Coleção Clínica Psicanalítica. São Paulo, Casa do Psicólogo.

FREUD, Sigmund (1990) Carta 52. [1896] ESB, Rio de Janeiro, Imago, v. I.

______________ (1990) Interpretação dos sonhos. [1900] ESB, Rio de Janeiro, Imago, v. V, parte II.

______________ (1990) O estranho. [1919] ESB, Rio de Janeiro, Imago, v. XVII.

______________ (1990) Projeto para uma Psicologia Científica. [1895] ESB, Rio de Janeiro, Imago, v. I.

GOLDFARB, Delia Catullo (2004) Demências. Coleção Clínica Psicanalítica. São Paulo, Casa do Psicólogo.

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