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Número Aniversario (10 años!!) - Noviembre 2008

São Paulo. A Cidade, A Memória, O Sonho

Vera Maria A. Tordino Brandão.
veratordino@hotmail.com
Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento – NEPE –
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC/SP.

Este trabalho apresenta os resultados do projeto São Paulo 450 anos: Memória Viva – Cidadania Ativa, realizado de 2003 a 2005. O objetivo geral foi evocar por meio das narrativas, orais e escritas dos moradores idosos, a história de seis bairros da cidade de São Paulo na comemoração dos seus 450 anos de fundação. Teve como objetivos: sensibilizar e formar os profissionais da área da saúde para escuta sensível e o potencial da memória sócio-afetiva, por meio das oficinas de formação (auto) biográficas; preparar a implementação das Oficinas (auto) biográficas junto aos idosos, incentivando-os a narrar, escrever e re-apropriar-se da história do bairro e da cidade; produzir os cadernos de memória; promover o intercâmbio intergeracional e a participação na vida social da comunidade; favorecer o empoderamento, base do envelhecimento ativo e cidadão.

Palavras-chave: formação; memórias e lugares; envelhecimento.

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Manuel Bandeira (1986)

Pasárgada, o lugar do sonho - a utopia - espaço de plenitude, no qual se depositam as expectativas e desejos. Lugar no qual, despreocupados, desfrutaremos a felicidade.

Nas narrativas que compõem este trabalho constatamos que este "território de sonhos" foi para muitos a casa paterna onde, na inocência e descuido dos anos de infância, viveram as primeiras impressões, filtradas pelo tempo, onde se mesclavam os sons, odores e sabores, que ficaram como marcas de raiz.

Calvino (2000), lembrando da casa de sua infância, diz que "uma explicação geral do mundo e da história deve levar em conta, antes de mais nada, a localização de nossa casa". Como para ele, também para os narradores a referência do espaço geográfico amplo – a vila, a cidade, o país – permanece na memória, como parte da marca identitária e lugar de sonho e refúgio. Lá, onde somos amigos do rei...

Ao longo da vida, os narradores perderam esses espaços de referência, pela migração, imigração, pela destruição causada, para muitos, pelas guerras e para todos pelo progresso. Mas, de todo o vivido a memória guardou, como um tesouro, dos lugares e saberes as marcas mais fortes.

Nesses deslocamentos, partindo das comunidades de origem, todos encontraram um pouso e, a partir de um estranhamento inicial, reconstruíram, lentamente, novas referências e significados nesta comunidade de destino – a cidade de São Paulo. Muitos anos passados, tantas mudanças e, repentinamente, perceberam a perda dessas, não tão novas, paisagens de referência que balizavam os caminhos.

No projeto SÃO PAULO 450 anos MEMÓRIA VIVA – CIDADANIA ATIVA - procuramos ouvir a palavra dos cidadãos idosos narrando as lembranças da cidade, hoje grande metrópole, que os acolheu, por nascimento, migração ou imigração. Todos construíram "um sonho feliz de cidade" e aqui trabalharam, criaram suas famílias, amaram e sofreram...

Por meio das Oficinas (Auto) Biográficas Memória e Cultura, resgataram e re-significaram as vivências objetivas e subjetivas nos espaços da cidade em transformação, como testemunhas dos inúmeros fatos históricos aqui ocorridos. Narrando suas histórias, re-apropriaram-se desse espaço de vida-trabalho, o que proporcionou um novo sentido a esta fase da vida – conferindo-lhes o protagonismo histórico, como guias das gerações futuras. Os testemunhos lançam novas luzes sobre os fatos vividos num tempo e espaço modificado, mas não perdido, pois "À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se à rebeldia da memória que as repõe em seu antigo lugar". (Bosi, 1987)

Neste projeto, devemos ressaltar a parceria e diálogo estabelecido entre a Universidade, as Instituições Públicas e a população da cidade, fundamentais para (re) conhecer (nos) na metrópole, aparentemente sem rosto e voz, como cidadãos.

A Pasárgada, idealmente desejada, é real na memória - e a utopia a que ela nos remete, e faz sonhar, parte de uma realidade interior mais rica – que, por meio das narrativas (auto) biográficas, pode colaborar nos enfrentamentos e resistências cotidianas, não como fuga, mas visando uma vida plena e saudável, um espaço-tempo para a imaginação e re-apropriação do "nosso" lugar.

O PROJETO.

O projeto São Paulo 450 anos – MEMÓRIA VIVA – CIDADANIA ATIVA resultou de parceria entre a Secretaria Municipal da Saúde/ Cogest – Área Temática de Saúde do Idoso – coordenado pelo Dr. Sergio Paschoal e por Marília Berzins - e o Núcleo de Estudo de Pesquisa do Envelhecimento (NEPE) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP coordenado, à época, pela profª dra Suzana Medeiros.

Seu objetivo geral foi evocar por meio das narrativas, orais e escritas, dos moradores idosos a história de seis bairros da cidade de São Paulo - Aricanduva / Carrão; Lapa; Mooca; Pinheiros; Santo Amaro e Sé - na comemoração dos 450 anos de fundação.

A metodologia desenvolvida e aplicada por Brandão (2002) desdobrou-se em dois momentos: inicialmente na capacitação de 15 profissionais das unidades de saúde (fonoaudiólogas; psicólogas; bibliotecárias; terapeuta ocupacional; assistentes sociais; enfermeiras) por meio das Oficinas de Formação Memória Autobiográfica: Teoria e Prática (30hs/aula) e, posteriormente, na supervisão da implantação e desenvolvimento do projeto nas respectivas UBSs (30hs), por meio de reuniões de acompanhamento com os profissionais.

O critério de escolha dos bairros participantes considerou sua antiguidade e o número de idosos residentes. No quadro abaixo estão descritas as populações das Subprefeituras destes bairros:

BAIRRO POPULAÇÃO IDOSOS %
Lapa 60.184 12.180 20.2
Mooca 63.280 12.699 20,0
Pinheiros 62.997 12.223 19,4
Santo Amaro 60.539 10.953 18,0
20.115 2.054 10,2
Carrão 78.175 12.292 15,72
TOTAL 345.290 62.401  

Fonte: IBGE/Censo Demográfico 2000

Participaram 62 idosos - 11 do sexo masculino e 51 do feminino - com idades de 59 a 89 anos, de diferentes profissões, escolaridade e locais de procedência, evidenciando a diversidade sócio-cultural das origens familiares, característica do multiculturalismo da cidade de São Paulo.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A proposta teórica que embasa este projeto é resultado do trabalho prático realizado com idosos, desde 1994, nas Oficinas Memória e Cultura, dos estudos teóricos que fundamentaram a dissertação de mestrado e a tese de doutorado em Ciências Sociais – Antropologia, e a docência junto aos profissionais da área gerontológica, experiência sistematizada e publicada (2002).

Nossa referência teórica é Antropologia em sua vertente interpretativa proposta por Geertz para quem "o objetivo da Antropologia é o alargamento do universo do discurso humano". (1989)

As narrativas autobiográficas contemplam esta perspectiva, já que desvelam os "olhares subjetivos" dos indivíduos ditos "comuns", trazendo vozes internas e diversas que narram trajetórias construídas com sonhos e alegrias, dores e perdas, tecendo as tramas das relações humanas em diferentes tempos e lugares.

A tradição oral, campo da Antropologia, traz por meio das narrativas na figura do griot - o narrador – a preservação da unidade e sentido de pertinência do grupo para as gerações futuras. Constatamos que, mesmo no contexto do mundo pós-moderno globalizado, as narrativas podem ser consideradas como formas de resistência cultural, pela re-apropriação de sentidos de pertencimento e identidades nos espaços das culturas de origem e destino.

O referencial avassalador da mundialização com a compressão do espaço e tempo, por meio da comunicação em tempo real, produz a falsa impressão de encurtamento das distâncias, colocando em nossa casa, território íntimo, outros mundos, culturas, o distante - o "outro longínquo".

Nesse contexto, não só os deslocamentos, mas as imagens de vários lugares do mundo, com suas singularidades culturais, passam a povoar nosso imaginário, mesmo sem a experiência concreta, e essa mudança na experiência do espaço-tempo, "borra" as fronteiras dos territórios de pertencimento identitários. (Harvey, 1994)

As narrativas, trazidas pelas memórias (auto) biográficas, na qual se mesclam os tempos e espaços externos e internos, podem fortalecer o referencial identitário, "protegendo-nos" dessa "sensação" de estranhamento.

Dois autores se destacam nos estudos sobre os trabalhos da memória e as relações intrínsecas ao tema "tempo e espaço". São eles Henri Bergson e Maurice Halbwachs.

Bergson (1990) destaca a importância da memória-hábito (ligada ao corpo) e das imagens-lembranças na conservação do passado, chamadas pelo presente com vistas à ação. Segundo ele as lembranças, na maior parte das vezes, são resgatadas por estímulos subjetivos, e o elo que liga as sensações passadas ao presente, também gerador de imagens, é o próprio corpo, que filtra o passado e o situa em relação ao momento atual vivido. Afirma que "é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida [...]". (idem:125).

É essa sensação, filtrada pelo corpo, que leva à percepção, funcionando como um seletor que procura no presente, ou no passado, o referencial para a ação, visto como um "sistema combinado de sensações e movimentos", lançando-nos no fluxo e refluxo das lembranças - do presente para o passado, que presentifica-se - avançando e retrocedendo, a memória ilumina, como num teatro, ora uma cena, ora outra, colocando-nos face a face com o passado revisitado.

As reflexões feitas por Maurice Halbwachs (1990) consideram que as lembranças, mesmo as consideradas únicas, mostram o "eu" narrador como parte de uma "comunidade afetiva", na qual se entrelaçam as diferentes situações familiares partilhadas, por e com outros membros do grupo, ligando-se a um contexto sócio-histórico mais amplo.

Segundo o autor, a memória "não é sonho, é trabalho", e lembrar é reconstruir o passado, através da linguagem, a partir dos quadros sociais do presente; são lembranças conscientes, que se apóiam num tempo socialmente referido - a memória está no grupo - e o trabalho de reconstrução do passado só pode ser realizado nesse contexto.

Aqui ele contrapõe-se a Bergson em sua afirmação que a memória, guiada pelo corpo à ação presente, quando se liberta dessa necessidade, refugia-se no imaginário - é a memória-sonho. Halbwachs afirma que o sonho é uma possibilidade de conhecimento, e por meio dele talvez possamos decifrar as marcas deixadas no inconsciente pela experiência vivida. No sonho não existe tempo nem espaço, é uma contínua sobreposição de imagens sem a lógica da realidade, sendo a subjetividade dominante, e que nossos sonhos nos colocam imagens do passado que nos parecem lembranças [...] como fragmentos, pedaços soltos de cenas realmente vividas por nós [...] (mas) nunca uma cena completa do passado reaparece aos olhos da consciência durante o sono". (1994:36)

O resgate e ressignificação, realizada pelos idosos, das histórias dos bairros e da cidade de São Paulo em seu processo de transformação em metrópole mostra, concretamente, os pressupostos teóricos que entrelaçam e complementam as propostas dos autores citados. Evidenciam-se nessas narrativas as lembranças individuais, entrelaçadas às memórias coletivas e históricas, mas re-elaboradas e reconstruídas intersubjetivamente. Nelas quanto de sonho, imaginação, fantasia e quanto de realidade? Em cada um vive a Pasárgada sonhada...

Esse projeto realizado com os grupos de idosos partiu do presente em busca de um passado vivido, favorecendo sua reconstrução e ressignificação, especialmente trazido pelos sons, odores e sabores - dos lugares, dos tempos, das identidades – categorias dinâmicas, construídas, múltiplas e passíveis de atualização na busca de um sentido para trajetória narrada como uma história. (Brandão,1999).

. Ele redefiniu e ampliou seu lugar social e as relações com o bairro e a cidade, apontado para o futuro pelo registro da narrativa e elaboração do caderno de memórias – transformando-os em produtores culturais trazendo para a comunidade a história vista "de dentro", na perspectiva antropológica.

Ao compartilhar lembranças, entre profissionais e idosos, os tempos individuais se cruzavam formando um outro tempo coletivo - tempo presente no grupo – surgindo uma nova "comunidade afetiva", propiciando a todos a segurança necessária para os relatos, em um espaço de valorização e compreensão. Assim a indiferença, marca das grandes cidades, dava lugar a uma outra rede de relações, como fios que teceram novas teias de relacionamentos, ligando-as a um contexto social passado / presente / futuro tecendo novas tramas de histórias e (re) significados.

Constatamos, por meio desse trabalho, a possibilidade de ampliar as perspectivas de conhecimento de si e de outros (Josso, 2002), partilhando "um campo de realidade onde se entrelaçam heranças biológicas, desejos, projetos, sentimentos, experiências". Evidenciou que para sermos depositários dessas histórias devemos construir juntos um espaço onde seja possível "criar com as pessoas uma relação de autêntica convivência [...] e cultivar atitudes de amor, entrega, criação de vínculos fecundos". Este espaço seria um "campo de jogo comum" onde se daria "uma experiência de mão dupla, quer dizer, reversível". (Quintás, paper.s/d).

A Cidade, A Memória, O Sonho.

"São Paulo é dura, às vezes até irreverente, mas é benigna, acolhedora e contagiante. Quem toma conta destas plagas, e não a esquece jamais, é seu protetor – São Paulo – o apóstolo de lutas e vitórias’. (José, 78a.)

"Hoje é dia do meu aniversário! Setenta anos de amor por esta querida e amada São Paulo, que acolhe a todos que aqui chegam de braços abertos... Para você São Paulo, hoje em meus setenta e quatro anos todo o meu carinho...". (Minerva 74 a.)

"A cidade era linda, com uma garoa que caia todos os dias. Durante muitos anos não guardamos os casacos, por causa da garoa e do frio que fazia em São Paulo". (Álvaro, 68 a.)

A cidade personifica-se e os narradores dela se re-apropriam, sentem-se "donos" desses espaços vividos – amigos do rei. Na impossibilidade de apresentar as narrativas completas, faremos alguns recortes focalizando, primeiramente, um espaço da cidade que aparece como ponto comum em todos os relatos - a praça da Sé.

Este espaço, geograficamente situado ao lado do Pátio do Colégio – marco histórico da fundação da cidade pelos jesuítas - tornou-se, especialmente com a construção da catedral, palco de acontecimentos marcantes na vida de São Paulo, e ponto de encontro de várias gerações de seus moradores.

Arnaldo (75 a.) nascido em Sorocaba, e descendente de espanhóis, lembra da demolição de muitos prédios para construção do metrô no Largo São Bento, e das transformações na Praça da Sé, e dos tempos de namoro, tendo-a como cenário.

"Saíamos da Catedral, tomávamos lanche no restaurante Gouveia, que ficava ao lado do Mendes Caldeira, eu ia para escola e ela para casa. Hoje guardo a lembrança de ter assistido a implosão do prédio Mendes Caldeira, a primeira a ser realizada no Brasil, para aumentar a nossa famosa Praça da Sé considerada o Marco Zero de São Paulo".

Diego (76 a.) veio para São Paulo, já adulto, da cidade de Mondariz, "província de Ponte Vedra, região da Galícia, Espanha", recorda:

"Do lado esquerdo (da Praça) os edifícios que existiam desde a rua Santa Tereza foram derrubados, inclusive o do cinema Santa Helena, [...] quando do projeto de fazer a estação Sé do metrô [...] Houve tempo que a colônia espanhola, todos os domingos se reunia no fundo da praça para conversar [...] e tinha no café Moka, local de encontro [...] Após o encontro havia a Santa Missa, todos os domingos na cripta da Catedral, oficiada por um padre espanhol. Nos meses de julho, mais ou menos no dia 25, que é dia de Santiago Apóstolo - padroeiro da Espanha, havia apresentação da sociedade espanhola "Casa de Galícia" e depois a Santa Missa solene".

Glória (66 a.) relata:

"Praça, palco de manifestações, comícios reivindicatórios, comícios de candidatos a cargos eleitorais [...] ditadura, manifestações de estudantes, tão jovens, cheios de ideais [...] Exército em prontidão, bombas de efeito moral, cheiro forte, fumaça, ardência nos olhos, latidos de cães, brucutus vomitando soldados [...] que puxavam, arrastavam, batiam, prendiam. Brasileiros contra brasileiros [...] correria, debandada...e depois o silêncio quebrado pelo badalar do relógio da igreja da Sé".

A narradora considera "a festa marcante, a festas das festas", ocorridas na praça, a do movimento Diretas Já! "[...] os gritos presos nas gargantas durante anos e anos de ditadura [...] gritos de júbilo! O Hino Nacional brasileiro, lindo, cantado por Fafá de Belém [...] som inesquecível, som inebriante cheio de fé e esperança".

Recorda o movimento dos ""Caras Enrugadas", precursor dos "Caras Pintadas" pelo pagamento do aumento de 147%, devido aos aposentados, e da década de 60, quando sentava com as amigas nos bancos da praça, embaixo das majestosas palmeiras, partilhando sonhos "[...] estudar, casar e ter filhos, um marido bonito, rico e muito bom. Combinar passeios – Vamos ao cinema? Tomar um chocolate na leiteria Vienense ? ".

"Durante esses últimos 30 anos, morando e trabalhando, estou diariamente no centro velho. Para mim este pedaço de São Paulo é uma festa constante. As lojas, restaurantes, botecos e barzinhos, sons, ruídos, cores, é meu cotidiano. Adoro andar no centro, me sinto alegre, participativa e com muita vontade de viver... A praça da Sé me fascina, me subjuga e sempre sinto vontade de dançar, rodopiando nela... Moro em São Paulo, dos milhões de habitantes, das oportunidades, da concretização dos sonhos. Sinto a cidade como um útero gigantesco, acolhedor, de mãe [...] Correspondo este amor com o amor de uma filha grata, orgulhosa".

Sensações... sons, sabores, odores da cidade

Arnaldo recorda e narra...

"Subia a escada rolante da Galeria Prestes Maia, saindo na Praça Patriarca onde constantemente tinha o homem do realejo com sua música e o periquito tirando sorte, as duplas caipiras tocando viola, o acordionista tocando a música do 4º Centenário, de autoria do Mário Zan [...] o bater das horas do relógio da Igreja de São Bento [...]"

Cândida (70 a.) nascida em São Paulo, descendente de portugueses, recorda do apito das fábricas, marcando os turnos de trabalho, do apito dos guardas-noturnos que nos "diziam" que estavam cuidando da nossa segurança, e dormíamos tranqüilos! Os sons das serenatas, noite adentro enchiam nossos ouvidos de magia e fascinação.

Leonella (73 a.) nascida em São Paulo, descendente de espanhóis e italianos, nos traz um relato no qual se mesclam diversas sensações...

"As marcas da infância ficam para sempre! Adorava quando minha mãe cozinhava batatas com água e sal e deixava reservada. Na frigideira grande colocava alho picado, cebola, pimentão vermelho e verde cortados em tirinhas e deixava dar uma leve fritura. A seguir colocava as batatas e tomates cortados em rodelas e despejava três ovos batidos, esperava um pouco... e estava pronta uma deliciosa e perfumada fritada. Como espanhola também fazia um belo acebolado com manteiga no qual eram fritas morcela (chouriço) Dessa fritura exalava, além de outros, um acentuado aroma de erva doce. Até hoje, se fecho os olhos e imagino a cena, consigo sentir esse perfume".

Os sons trazidos à lembrança são também os primeiros da infância no Brás. Os sinos nos pescoço dos cabritos, e os "cabriteiros" vendendo leite nas ruas, do barulho dos animais no quintal. "O sino das igrejas, a matraca dos vendedores de biju, a gaita dos amoladores de faca, o som do rádio da marca Cacique... E um dos mais marcantes - o do bonde. O cobrador recebia o dinheiro e puxava uma cordinha, acoplada a um relógio com marcador, cujo som era "dim-dim", e as pessoas faziam troça dos cobradores dizendo: - Dim-dim, dois pra a Light e um pra mim..."

Glória (66 a.) nascida em Ponta Porã, em uma grande família de pai sírio e mulçumano e mãe brasileira e adventista, relata as lembranças de Vovó Laura (materna), mulher forte, ia para o campo montada num cavalo enorme (hoje eu acho que não era tão grande...) e controlava o gado e matava ovelhas, carneiros e frangos com uma faca pontuda e muito afiada em golpe certeiro. Os muçulmanos, judeus e adventistas não comem carne de animal estrangulado, existe um ritual para sacrificar.

É deste tempo também "o cheiro do pão fresquinho, bolo, carne, aves, peixes assados[...] Mais tarde na cidade grande, aqui em São Paulo, descobri que o cheiro da fome é mais forte, dolorido, desperta o apetite com agressividade. Naquela época o cheiro de alimento era uma tortura, estômago vazio, salivando de vontade de comer qualquer coisa... Então, quase corria para chegar à Ladeira Porto Geral, onde vendiam churrasquinho grego e um suco morno de laranja diluído com água..."

Nascida em Jaú em 1936, e moradora da Mooca há 65 anos, Shirley fala de um dos mais tradicionais bairros da cidade e reduto da comunidade italiana.

"Ao cheiro do café Sucesso, misturava-se o cheiro gostoso do açúcar União. Das altas chaminés da Souza Cruz, na rua do Oratório, saia o cheiro de fumo usado na fabricação de cigarros. Ainda hoje, conforme a direção do vento, sente-se o cheiro de doces feitos com coco, das fábricas nas travessas da rua do Hipódromo e da rua Bresser".

"Nos anos 60, o cronista de um jornal de São Paulo dizia que a Mooca cheirava a fritura. Talvez não se possa contradizê-lo, pois o bairro era totalmente de casas baixas, somente alguns sobrados, e ao passar pelas calçadas era normal sentirmos o cheiro de temperos no feijão, molho de tomates para as macarronadas das famílias, bifes fritos em frigideiras e doces caseiros... Na minha casa sempre teve um doce feito com massa e frito no óleo, logo em seguida polvilhado com açúcar, e vinha de outras gerações de família, que é chamado de "crostoli".

A esses relatos "saborosos" somaram-se outros, nos quais se explicitam as dificuldades, os medos e angústias, "estranhamentos", enfrentados pelos pioneiros desses bairros, hoje importantes e desenvolvidos. A migração e a imigração trouxeram desconfortos semelhantes, porque todos deixaram para traz referências que balizavam suas identidades ligadas aos lugares de origem, para a aventura de refazer a vida em outra cidade, outro país – lugares de destino.

Construíram então, penosamente, outro quadro de referências que deveria balizar o futuro, sentimentos presentes na narrativa de Giuseppa, nascida na Sicília em 1934, que chega no Brasil com 18 anos em companhia dos pais e irmãos, e diz: "O que não esqueci foi o apito do navio quando deixei a Itália... Um som de tristeza’. O som do apito do navio vem do passado, mas outro, que ainda persiste, é o da chegada do trem na estação do bairro da Lapa, bem perto de sua casa "[...] Som gostoso é de todas as lembranças [...] de todos os tempos...Seja de que país for, e que fazem parte da nossa vida".

Considerações Finais

Os resultados, do trabalho de formação dos profissionais e seu desdobramento junto aos idosos, foram considerados positivos analisando as avaliações escritas; as observações realizadas no trabalho de supervisão; o resultado do processo de mediação e material produzido.

A proposta das Oficinas de Formação para profissionais apontou um espaço de estudo e reflexão, no qual o processo vivido por cada um, e pelo grupo como um todo, foi o destaque a ser valorizado. Buscou no encontro interdisciplinar, entre os diferentes saberes-fazeres disciplinares e os resultados das práticas, uma atitude de abertura a um conhecimento a ser construído pelo grupo, no qual o respeito e a ética formaram a base para que os relatos das experiências, as dúvidas, as questões pudessem surgir.

A experiência autobiográfica possibilitou o aprofundamento das reflexões, levando o profissional a repensar o sentido de seu projeto de vida-trabalho, ressignificando seu "ser e estar" no grupo social onde vive e atua profissionalmente. Acreditamos que só uma articulação consciente, como exercício diário, pode levar ao processo de construção de espaços e tempos de resistência, dos indivíduos e das culturas, frente às aceleradas mudanças desta que é dita "a sociedade da informação", e uma atuação profissional qualitativamente diferenciada. Propusemos na formação a leitura de textos teóricos, reflexão e discussão; articulação com a prática de cada um trazida ao grupo. Ser escutado e escutar. Desenvolver uma escuta sensível de si e dos outros. (Barbier, 1998)

Objetivou desenvolver competências específicas, utilizando como ponto de partida a trajetória e o projeto de vida-trabalho de cada um – (re) conhecer-se, recuperando a memória da trajetória, para ir ao encontro do outro - idoso, aluno, paciente ou colega de equipe. O projeto, dirigido aos profissionais que se tornaram multiplicadores das Oficinas junto aos idosos, pode ser inscrito como uma das possibilidades da educação continuada, considerada hoje como processo fundamental, diante do aumento da longevidade e da necessidade de formação e atualização dos profissionais da área.

Esclarecemos que as avaliações do processo de trabalho, tanto dos profissionais quanto dos idosos, foram entregues sem identificação, a fim de resguardar a privacidade e abrir a oportunidade também para críticas e / ou sugestões buscando o aperfeiçoamento do trabalho.

A avaliação de uma dupla de profissionais, que atuaram conjuntamente, reforça esta conclusão.

"A participação ativa dos idosos na elaboração do Caderno de Memórias foi o produto concreto para resgatar a auto-estima e o processo de inclusão social dos mesmos. Houve uma preocupação e um cuidado constante desde o início da Oficina em favorecer, sempre que possível, um espaço onde os idosos pudessem desenvolver a autonomia e exercitar seus pontos de vista e opções, aliado ao papel de narradores de suas histórias. Os desdobramentos desse processo foram riquíssimos: movimento de reinserção social, com valorização do seu papel perante a família e a comunidade; crescimento individual e grupal (dos participantes e coordenadoras); estabelecimento de vínculos afetivos e articulação dos participantes (anotar endereços, telefonar, trocar informações); estímulo a uma atitude mais ativa de busca e organização de dados... e manutenção do papel de "narrador da própria história", ampliando seu universo e redes sociais (contatos com a imprensa local, elaboração de seu próprio álbum de memórias com o envolvimento dos familiares, projeto de escrever um livro, etc). Conduzir esta Oficina promoveu um enriquecimento interno, profissional e pessoal, muito grande. Acreditamos que esse crescimento foi gerado tanto pelo produto positivo obtido (concretização da proposta) quanto pela própria característica dessa Oficina que envolve reminiscências e, logo, AFETA O OUTRO".

A concretização do projeto nos cadernos de memórias – com as narrativas escritas pelos idosos - lançado em eventos festivos da comunidade; sua participação como narradores em diferentes mídias, incluindo sua divulgação no Portal de Envelhecimento – www.portaldoenvelhecimento.net

– e, finalmente, a publicação do trabalho final em edição especial da Revista Kairós – publicação acadêmica do PEPG em Gerontologia PUCSP - com as narrativas e fotos. (2005), promoveu: - visibilidade deste grupo etário, fortalecendo os mecanismos sociais de empoderamento – poder sobre si - inclusão social, reafirmação identitária, integração intergeracional, re-apropriação da cidade - "espaços de vida" - valorizando-os como sujeitos históricos, apontando para um envelhecimento independente e integrado.

Os resultados, expressos nos exemplos, trazidos nas avaliações de dois narradores idosos da cidade, também validaram o projeto, indicando um caminho e incentivando o seu prosseguimento.

"Não imaginava do que se tratava, estava curiosa e ao mesmo tempo preocupada. Memória: será que tenho? Se não me lembro do que comi ontem! Mas quando a primeira senhora começou a falar, vi que o passado estava presente na cabeça de todas as participantes. Cada uma contou sua história: brasileiras, portuguesas, espanholas, casadas, viúvas e solteiras. Algumas tinham filhos, outras não. Umas tiveram casamentos felizes, outras eram separadas. Fiquei feliz ao perceber que todas tiveram lutas e também perdas, grandes... Apesar de tudo os bons momentos, as alegrias da vida foram sem dúvida alguma, muito maiores".

"De onde vêm as histórias? Foi com preocupação que fiquei inicialmente me perguntando: o que os outros esperam de mim? E também me questionando, se teria algo para contar que fosse de interesse para as outras pessoas. Tudo o que acontece no dia-dia daria para contar? Seria história? As minhas lembranças do passado, aquilo que conheci, poderia servir para alguma coisa? Sim! Descobri que minhas recordações fazem parte de uma história não oficial, mas viva, pois eu estava lá enquanto a história acontecia".

Notas

1 Trabalho apresentado no III Congresso Internacional de Pesquisa (Auto) Biográfica - organizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - e realizado em Natal (Brasil) em setembro de 2008.

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