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Número 14 - Abril 2004

A Construção Social do Estigma em Alunos Adultos (1)
e a construção de "máscaras" para
a sobrevivência na sociedade letrada.

Nilce da Silva
nilce@usp.br

"O horror à mistura reflete a obsessão de separar"

Z. Bauman

Palavras-chave: estigma – máscaras – sociedade letrada - adultos

Resumo: O presente artigo é fruto de debates e reflexões do Grupo de pesquisa, ensino e extensão "Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar" criado em outubro de 2002 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Os conceitos de "estigma" e de "representação social", tal como define E. Goffman, devidamente contextualizados na Sociologia de P. Bourdieu e Z. Bauman, esclarecem o cotidiano dos atores pertinentes à esta trama social. Neste sentido, a autora ainda apresenta duas "máscaras" – a de leitor e a de escritor -elaboradas e usadas por estes atores ao longo de seu trajeto social e escolar que têm como finalidade a sobrevivência na sociedade paulistana, letrada por excelência, cuja academia responsabiliza-se pela produção e manutenção da crença da superioridade dos valores sociais do universo letrado.

The construction of stigma in adults students and the construction of masks to survivel in the lettered society.

Key Words: stigma – masks – lettered society - adults

Abstract: This article is a consequence of debates and reflections of the Group of Research, Teaching and Extension "Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar" made in octubre 2002 in the Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. The concepts of "stigma" and "social representations", as they are defined by E. Goffman, inside the Bourdieu and Bauman’s Sociology, which illuminates the quotidian of the actors that belong to this social scheme. In this sense, the author still presents two masks – one of reader, another of writer – made and used by these actors in theyer social and scholar way that have the finality to survive in the paulista society, lettered by excellence, of which social values are responsibility on academic world.

Introdução

Este artigo reúne um conjunto de reflexões nascidas nos encontros formais e menos formais, reais e ou virtuais, dos componentes do grupo de pesquisa, extensão e ensino "Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Escolar e Social". Ao longo deste trabalho, que teve início oficialmente em outubro de 2002, muitas questões pertinentes à temática do ensino da leitura e da escrita da Língua Portuguesa a adultos lusófonos em situação de pouca escolarização, basicamente migrantes de primeira ou segunda geração.

Dois temas reincidiam e inquietavam sobremaneira professores e estudantes do referido grupo: 1- O "estigma" atribuído aos alunos adultos, mais idosos, em classes de ensino "supletivo". 2- As "diferentes estratégias" utilizadas por estes atores com a finalidade da sobrevivência nas sociedades de acolhimento letradas em que se inseriam.

Sendo assim, clássicos da Sociologia - "O Estigma", "Prisões. Manicômios e Conventos" e ainda, "A representação social do eu", Obras de E. Goffman, foram revisitados e por meio deles, foi possível sistematizar as considerações que compõem este artigo.

A produção de bens simbólicos e da crença que estes engendram, de acordo com P. Bourdieu, assim como, aspectos da modernidade líqüída, apresentados por Z. Bauman, mostraram-se necessários e suficientes para a discussão sobre o processo de formação do estigma destes adultos, assim como, para a compreensão da necessidade da elaboração de máscaras de sobrevivência na " selva" letrada, especificamente, paulistana.

O conceito de "estigma".

Nos tempos antigos, os gregos criaram o termo "estigma" que significava o conjunto de sinais corporais que constituíam-se como indicativos de algo extraordinário sobre o status moral de quem os apresentava. Estas marcas corporais eram feitas com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, ou criminoso, ou traidor. Por esta razão oculta, porém, explicitada, a pessoa devia ser evitada pois tratava-se de um ser poluído.

Com o tempo, o termo estigma passou a indicar "depreciação" por parte daquele que o possui em detrimento da supervalorização dos demais.

De acordo com as informações obtidas ao longo da pesquisa2 que realizamos, por meio de observações sistemáticas em escolas de Educação de Adultos, tratamos de fazer uma lista das marcas corporais "feitas" em alunos adultos ao longo do processo social, aliadas aos bens simbólicos que portam consigo. Ressaltamos que esta construção é "ideal", no sentido weberiano da palavra e que foi feita com o maior distanciamento, e portanto, estranhamento possível. Obtivemos: Cabelos sem corte definido; pele morena; cabelo crespo; sapatos, sandálias ou chinelos de plástico, pano ou similares; cabelos femininos tingidos ou em vias de tingimento, danificados; bijouterias ou a não existência de ornamento com metais ou pedras preciosas; pintura inexistente nas unhas masculinas; roupas de algodão, tergal, poliéster ou similares; roupas bastante usadas; falta de dentes, dentes em má conservação, próteses dentárias em desalinho; óculos inadequados ou a falta de óculos mesmo quando a pessoa necessita deles; pasta de plástico, sacola ou saco plástico para transporte do material escolar; estojo de pano; cadernos "universitários"; pele marcada pelo tempo; mãos ásperas e com pouca habilidade para os movimentos exigidos pela escrita; unhas com resíduos de produtos manuseados no trabalho; odor a suor ou a cosméticos de baixo preço no mercado; cadernos com folhas, capas...com sinais de gordura; sacos plásticos com banana, sanduíche; rachaduras nos pés; falta de livros no conjunto do material escolar que portam ou, ainda que raramente, existência de livros de auto-ajuda junto com o material escolar.

Do nosso ponto de vista, estes "sinais", em conjunto, formam o espectro do estigma que acompanha estas pessoas em sua vida social e escolar. E forçosamente, tal estigma reitera a exclusão social e escolar dos alunos adultos em situação de pouca escolarização em Língua Portuguesa.

O processo de formação do estigma de alunos de EJA

Diferentemente de muitos dos sinais feitos em rituais com o objetivo de estigmatizar um ladrão, por exemplo, ao cortar-lhe uma das mãos, os sinais que aqui levantamos são tecidos ao longo da vida em sociedade destes sujeitos.

Tal carreira moral de estigmatizado inicia-se praticamente no momento da sua concepção destes sujeitos, tendo em vista que, já neste momento, o meio ambiente faz-se presente. Assim, uma criança negra, pobre, de pais excluídos socialmente (com carência alimentar, com falta de assistência média etc) terão maior probabilidade de receberem o estigma aqui em discussão.

Desta forma, estes alunos, de um modo geral, com o estigma em particular apresentado, tendem a ter experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição.

Além disto, todos eles, de uma maneira ou de outra, devem ajustar as suas idiossincrasias à esta carreira moral que lhes é imposta.

Segundo Goffman, a carreira moral compõe-se de diferentes fases: A - A pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma idéia geral do que significa possuir um estigma particular. B - A pessoa aprende que tem um estigma particular. C - Ela aprende que possui um estigma particular e conhece detalhadamente as conseqüências de possuí-lo.

Entendemos que para estes alunos adultos, estas fases não ocorrem com a mesma velocidade para cada um deles. O desenvolver das mesmas depende substancialmente do contato direto com a sociedade letrada; momento este da migração, em boa parte dos casos, e, mais especificamente, da entrada na escola.

Sendo assim, a entrada na escola abre possibilidades para a saída do encapsulamento de proteção em que um indivíduo se encontra protegido pela família, e a fase C descrita acima é imposta brutalmente.

Estes alunos percebem-se, então, como desacreditáveis ou desacreditados totalmente. Por sua vez, a sociedade letrada possui todos os mecanismos latentes para rapidamente executar o ritual de passagem do desacreditável para o desacreditado. Esta forma de genocídio é um exercício de engenharia social racional de produção por meio artificiais de desqualificação das pessoas, servindo-se da racionalidade científica da academia, responsável pela produção e pela manutenção da crença da superioridade dos valores sociais do universo letrado.

Desta maneira, a aprendizagem das primeiras letras tem um entorno de grande pressão social que definirá o status do sujeitos em questão e aliado ao esforço necessário ao aprendizado da língua escrita, o aluno adulto a que nos referimos neste artigo questiona-se sobre como ele se apresentará em sociedade. Dito de outro modo, estas pessoas perguntam-se: Exibo socialmente que não domino a leitura e a escrita? Revelo esta situação para os demais? Escondo-a? Minto sobre o fato? Para quem? Como?

Uma das maneiras encontradas por estes adultos para responder à esta questão é a utilização de máscaras sociais letradas em determinados ambientes, inclusive a escola. Sobre esta dissimulação, discorreremos em seguida.

Máscaras da sobrevivência na sociedade letrada.

As máscaras sugerem representações sociais. No caso das sociedades letradas, categorizamos estas atuações em 2 tipos:

1- A máscara de leitor; 2- A máscara do escritor.

Os sujeitos desta nossa pesquisa, muitas vezes, utilizavam estas construções para a sobrevivência na selva das letras. Fazemos abaixo uma descrição das mesmas:

Máscara de leitor: Sujeito com óculos, portando livros, revistas e especialmente jornais.

Exemplo: O aluno adulto em situação de pouca escolarização ao entrar em um ônibus, abre o jornal, coloca seus óculos, abre um jornal, dirige seu olhar para as páginas do mesmo e faz movimentos com os olhos da esquerda para a direita no material escrito.

Máscara de escritor: Sujeitos com óculos, portador de canetas, especialmente na bolsa da camisa ou em lugar de fácil acesso, com estojo.

Exemplo: Aluna adulta, com caneta na mão, óculos, encena preenchimento de palavras cruzadas em livro de passa-tempo.

Os sujeitos desta pesquisa que representavam com o auxílio destas máscaras pretendiam diminuir a angústia que a sua situação pessoal lhe causava em sociedade. Ou, dito de outro modo, esforçavam-se para corrigir uma situação na crença de que ao utilizarem estes símbolos de prestígio na sociedade letrada, ou ainda desidentificadores de pouca ou nenhuma escolarização, encobertariam o seu estigma nesta sociedade.

Estas máscaras são usadas, com melhor ou pior performance, na tentativa da pessoa que se encontra em situação de estigmatizado saber que aquilo que ele fala pode se tornar capital simbólico, legitimamente reconhecido por nossa sociedade.

Considerações Finais

Provavelmente, adultos em situação de pouca escolarização não se livrarão do peso do seu estigma enquanto existirem pessoas na mesma situação. O aluno que tenta escapar sozinho desta situação percebe-se preso em uma situação ambivalente: Caso abra mão de suas origens, de seu círculo social mais íntimo, é acusado de negligenciar o seu dever, a sua herança cultura. Por outro lado, se ele pretende elevar o status de outras pessoas da sua intimidade que se encontram em situação de pouca ou nenhuma escolarização, continuará a pertencer à esta categoria de pessoas. Em suma, nas duas opções não será aceito pelo grupo dos não estigmatizados e poderá se tornar um estranho em seu grupo social de origem. A situação de perdedor é permanente.

"Manter o estranho a uma distância mental, "encerrando-o" numa concha de exotismo, não é, contudo, suficiente para neutralizar sua inerente e perigosa incongruência. Afinal ele continua por perto. Um momento de desatenção e o intercâmbio pode transbordar os limites permitidos. Assim, os estranhos continuam sendo os ‘pegajosos’ permanentes, sempre ameaçando eliminar as fronteiras vitais à identidade nacional. O perigo deve ser assinalado, os nativos devem ser advertidos e mantidos em alerta para não sucumbirem à tentação de comprometer os caminhos separados que fazem deles o que são. Isso pode ser conseguido desacreditando-se o estranho, representando suas características exteriores, visíveis e fáceis de identificar.... como sinais de qualidades ocultas e por essa razão ainda mais abomináveis e perigosas." (Bauman, 1999, p. 76 e 77).

Em suma, os alunos adultos sobre os quais refletimos neste artigo são portadores de um estigma conveniente para os demais membros da sociedade letrada paulistana na medida em que este se constitui como arma conveniente na defesa contra a inoportuna ambigüidade do estranho. Ou seja, a essência do estigma é enfatizar a diferença que está em princípio irremediavelmente reparada, o que justifica, portanto, uma permanente exclusão.

Nas palavras de H. Freeman e G. Kasembaum, citados por Goffman:

"A existência de um sistema de valores freqüentes entre estas pessoas é evidenciado pelo caráter comunitário do comportamento dos analfabetos entre si. Eles não só passam de indivíduos inexpressivos e confusos, como freqüentemente aparecem na sociedade mais ampla, a pessoas expressivas e inteligentes dentro de seu próprio grupo mas, além disso, expressam-se em termos institucionais. Tem, entre si, um universo de respostas. Formam e reconhecem símbolos de prestígio e desonra; avaliam situações relevantes em termos de suas próprias normas e seu próprio idioma e, em suas relações mútuas, deixam cair a máscara de ajuste acomodativo." ("The Illiterate in América", Social Forces, XXXIV (1956), p. 274. p. 29.)

Notas

1 Neste artigo, quando utilizamos o termo "alunos adultos", referimo-nos a pessoas de 30 a 73 anos.

2 Referimo-nos à pesquisa que realizamos em nível de doutoramento (1998-2001), de pós-doutoramento (2002) e no âmbito do Projeto Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar (desde outubro de 2002).

 

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.

________________ Modernidade e ambivalência. Rio e janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999.

BOURDIEU, Pierre. A Produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro, Editoria Guanabara, 1988.

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