Estados Generales del Psicoanálisis |
Pequeno
relatório do coloquio
Os Estados Gerais da Psicanálise
Sonia Alberti 1
Tendo tido a oportunidade de participar - tanto com um trabalho 2 quanto pessoalmente - desse acontecimento na Psicanálise do ano 2000, fiz algumas anotações durante seus quatro dias, as quais agora redigi para apresentação à rede dos Estados Gerais da Psicanálise. Certamente falho e com inúmeras lacunas, esse Pequeno Relatório talvez contribua com a elaboração que alguns colegas estejam realizando para a reconstituição do evento. Todas as observações no sentido de um enriquecimento dessa tentativa de resumo são desde já muitíssimo bem vindas e por elas agradeço.
Agradeço igualmente à Capes e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro por terem tornado possível minha participação no Colóquio. O texto que segue baseia-se fundamentalmente nas anotações realizadas durante o evento. Ele se subdivide em:
- Introdução;
- O Programa e seu detalhamento, e
- Conclusões pessoais.
1. Introdução
Colóquio Internacional convocado por genial iniciativa do psicanalista francês René Major e que teve como sua maior divulgadora em nível internacional Elisabeth Roudinesco, os Estados Gerais da Psicanálise se prepararam durante os dois últimos anos com o objetivo de "permitir, a todos aqueles que o desejam, de expressarem sua opinião sobre as questões da psicanálise no século XXI". Com esse objetivo, foi criado um site na internet (convergences@convergences.fr) que já era visitado com freqüência antes do próprio Colóquio e que, durante o evento, segundo foi divulgado em plenária, era acessado diariamente mais de oito mil vezes, do mundo todo. Duzentos textos foram enviados para serem discutidos durante o Colóquio.
De uma forma geral, o evento foi um acontecimento na história da psicanálise, e o Brasil estava muito bem representado, com duzentos e dez psicanalistas brasileiros presentes e citado desde a alocução inicial de Elisabeth Roudinesco que observou, entre outras coisas, a particularidade da participação de psicanalistas brasileiros na vida acadêmica - o que não é comum nos outros países, com exceção da França. Observou que no Brasil os Institutos de Psicologia das universidades desenvolvem um trabalho sério com respeito à psicanálise e que muitos psicanalistas brasileiros integram os quadros regulares de docentes. A questão seria retomada ainda algumas vezes durante os debates, por exemplo quando eu mesma achei importante questionar a identificação do analista com o mestre, na fala de um colega. Tendo uma prática tanto como psicanalista no consultório, quanto como professora na universidade - me inscrevendo pois na série observada por E.Roudinesco em relação ao Brasil na alocução de abertura do Colóquio -, a questão da transmissão da psicanálise me acompanha há muito tempo pois sei que, de alguma forma, transmito sim algo da psicanálise também na universidade. Mas que certamente, nem mesmo na universidade essa transmissão se dá por assumir o lugar do mestre, ao contrário, é justamente por não assumi-lo que algo da psicanálise pode ser transmitido, e isso se justifica na teorização de Jacques Lacan quando diz que aquele que ensina o faz do lugar do sujeito, no discurso da histérica. Essa intervenção foi retomada na conclusão dos trabalhos daquela manhã, quando o colega brasileiro Daniel Kupermann observou a importância de aprofundarmos a questão para respondermos, justamente, com nossa experiência, às críticas que ainda se fazem ao ensino da psicanálise na universidade - e que nem sempre são infundadas -, ensino esse de que também ele participa. Como será possível ver adiante, o debate do assunto é rico e ainda incipiente.
Várias foram as intervenções quanto à dificuldade de se obter verbas de fomento ao desenvolvimento da psicanálise nas universidades de forma geral e muitos colegas sublinharam a importância de uma ação conjunta para mobilizar os psicanalistas nesse sentido.
Digo que o Colóquio foi um acontecimento porque foi talvez a primeira vez, em tão larga escala, que os psicanalistas se sentaram juntos, na mesma sala, independente de suas formações e transferências, de suas filiações institucionais, de suas escolas. Havia desde aquele que insistia em dizer que analisava pacientes tanto no consultório quanto em seu laboratório experimental de uma universidade americana, até o psicanalista de formação jungiana que se dizia ali em minoria, passando por analistas formados pela IPA, psicanalistas de formação lacaniana, e um psicanalista que, no final da primeira jornada, observou que o problema ali era o fato de que os Estados Gerais da Psicanálise se estruturavam a partir de um recalque: Lacan (sic).
Com efeito, ao fim da primeira jornada de trabalhos, a impressão que os Estados Gerais da Psicanálise davam, podia ser interpretada de forma bastante inquietante. Ou seja, era possível avaliar essa primeira jornada como uma grande Babel: todos falavam línguas diferentes. Ainda na manhã seguinte, quando o tema era "Transmissão da psicanálise", essa impressão podia insistir. Mas à medida em que as discussões avançavam, os encontros se multiplicavam e mais analistas intervinham, essa primeira impressão necessariamente se dissipava, deixando claro que os Estados Gerais da Psicanálise são, antes de mais nada, um ato público contra o totalitarismo institucional e social, com o qual a psicanálise teve que lutar durante todo primeiro século de sua existência - desde o totalitarismo das próprias instituições psicanalíticas, até o totalitarismo no mundo em que nasceu e em que deu seus primeiros passos. Observe-se, por exemplo, as próprias críticas aos organizadores do Colóquio por não terem aberto as portas aos estudantes que poderiam ocupar as galerias do anfiteatro - aliás muito bonito - e que ficaram vazias.
Analistas experientes, cada um com sua estória, contribuiram com esse ato, manifestando-se publicamente, como cidadãos de um mundo em que o psicanalista toma posição política, como democrata. De Annelie Stern, que relatou sua experiência de psicanalista num campo de concentração nazista quando, falando de Sigmund Freud pode provocar sonhos noturnos que talvez permitiram a alguns sobreviverem ao holocausto; passando pelo ato da leitura de sua carta de demissão da Associação Internacional de Psicanálise de Helena Bessermann Vianna, testemunha das arbitrariedades dessa instituição psicanalítica durante a última ditadura vivida pelos brasileiros; até a aprovação conjunta e unânime de que os Estados Gerais da Psicanálise devem continuar a publicar em sua página na internet, o Colóquio foi uma demonstração de que a psicanálise, inaugurada por Sigmund Freud, está só começando, vislumbrando para o século XXI uma participação conjunta dos psicanalistas na tentativa de estarem presentes nos inúmeros momentos em que o mal estar na cultura deixa o homem em profunda angústia.
Durante todo evento, e antes e depois, os jornais mais importantes de vários países noticiaram o Colóquio, destacando-se as diversas reportagens do Le Monde que, durante dez dias colocou a psicanálise em debate. No Rio de Janeiro, destaque-se quanto a isso o Jornal do Brasil e o Globo.
Com tantos analistas presentes, as intervenções não puderam ser longas e os organizadores do Colóquio pediam que se desse a palavra àqueles que a solicitavam pela primeira vez.
Tal como nos Estados Gerais de 1789, também aqui as intervenções podiam suscitar palmas, ovações e vaias. Decididamente, os Estados Gerais da Psicanálise implicam uma tomada de posição política na psicanálise. Seu exercício implica um posicionamento político e, aquele que não quer assumi-lo, não deixa, com isso, de se exercer politicamente.
Finalmente, para terminar essa introdução, ainda é preciso dizer que esse posicionamento político também implica uma escolha do sujeito pelas instituições às quais se filia e que o fato de participar dos Estados Gerais da Psicanálise não desobriga o psicanalista de cuidar de sua formação continuada, para o que muitos dos presentes reafirmaram a importância das associações psicanalíticas onde o psicanalista pode ter um intercâmbio com seus pares. Os Estados Gerais da Psicanálise se instituem assim num lugar em que, independente dessas escolhas particulares, as barreiras entre escolas e instituições de formação deixam de se exercer como um impedimento à criação de uma comunidade psicanalítica internacional, para terem um papel definitivo no fortalecimento da própria psicanálise, e sua presença no século XXI.
O Programa e seus desdobramentos.
Manhã de Sábado, 8 de julho de 2000: Abertura.
Após a fala de Michèle Gendreau-Massaloux, Reitora da Agência Universitária da Francofonia, que chamou a atenção para a tradução feita por Derrida, em 1967, do conceito Aufheben para rélève - implicando aí tanto a colocação em relevo quanto a referência -, introduzindo portanto o tema de nosso Colóquio no contexto do saber ocidental e de seu tratamento epistêmico - além de prenunciar a conferência de Jacques Derrida no terceiro dia do Colóquio -, René Major tomou a palavra remetendo essa alocução de abertura à aproximação do tradutor e do psicanalista: ambos fazem a prova do estrangeiro. E disse:
Se o objeto da psicanálise é o impossível, o desafio do psicanalista é renovar quotidanamente sua língua, na contramão do que fixa o sentido, ou seja, a própria determinação inconsciente. Isso se dá quando o analisante se dirige ao analista o que, portanto, necessariamente ocorre fora da universidade precisando ser sustentado nas instituições privadas onde isso poderia ser passível de transmissão. O que propôs para norte desse Colóquio, ou seja, para pensarmos o lugar da psicanálise no mundo, foi um posicionamento contra a segregação e a violência que, estrangeiras às leis que dão sentido, podem ser tratadas pelo psicanalista a partir do que ele sabe da psiquê.
Tratamento proposto aqui a partir desse enquadramento dos Estados Gerais, que há duzentos anos, no dia 9 de julho de 1797 promulgou a Assembléia Nacional como constituinte na França, sublinhando a ausência de privilégios senão aquele que outorga a cada um participar da reflexão e da preparação do acontecimento.
Em seguida, veio a vez de Elisabeth Roudinesco saudar os participantes. Observou que hoje há trinta e dois países em que a psicanálise está instituída com grupos ou sociedades; quarenta e um países em que há psicanalistas se exercendo na clínica, num total de trinta mil analistas praticantes, o que, em cem anos de existência, não é pouca coisa. A partir de sua avaliação, a psicanálise é um fenômeno urbano, que pressupõe a solidão do homem que fica prejudicada num contexto de vida tribal.
Elisabeth Roudinesco retoma a fala de René Major para dizer que a psicanálise é e sempre foi contra todas as formas de fascismo, da violência ao ódio de si mesmo e dos outros. Assim, não existe uma internacional mas internacionais, em perpétuas mutações, ao contrário do que poderia querer impor, por exemplo a IPA, que viu surgirem, depois dos anos vinte, as cisões que foram várias. Estas, não cessaram de vincular a psicanálise ao descentramento do sujeito e à perda do domínio (perte de maîtrise). Ao mesmo tempo, na história desses cem anos, inúmeras críticas à psicanálise exigiram dos psicanalistas sublinharem seu lugar no mundo. Da crítica a um pansexualismo - na primeira metade do século XX -, à crítica da ausência de cientificidade, passando pela crítica de que a psicanálise implicaria um retorno ao humanismo.
Sem querer definir respostas, E. Roudinesco propôs perguntas para as discussões que esta mesa inaugural abria: no Brasil, há psicanálise nos institutos de psicologia das universidades, que lugar para a transmissão? Como construir um saber clínico a partir de uma prática que não se dá necessariamente no divã, sem abandonar as definições freudianas? A homossexualidade ainda é uma perversão? Que estatuto para a criança nas novas organizações familiares, por exemplo de casais homossexuais? Que futuro para a psicanálise em países onde a psicanálise começa a chegar após a queda do comunismo? Que exportação para a psicanálise? Como dogma? Como clínica?
Essas falas de abertura foram longamente aplaudidas, sobretudo pelo trabalho que todos reconheciam a ambos psicanalistas que sustentaram a realização desse acontecimento até o fim. Em seguida, alguns colegas intervieram, do que foi possível fazer algumas notas.
Gilda Sabsay, da Argentina, ratificou: as condições para o exercício da psicanálise são a ética e a transferência e neste exercício não há como evitar a Sybilis e a Caribidis da psicanálise, ou seja, a transferência e a sexualidade. Há maneiras perversas de impedir a psicanálise, de forma mais sutil do que simplesmente interditar a sua prática. Entre elas, a proposta de práticas psicoterápicas que, ao contrário da psicanálise - e mal espelhando-se nela -, convocam os demônios mas os despedem antes de elaborá-los (referência aqui à frase de Freud que faz da psicanálise uma exigência ética na qual "não podemos convocar os demônios e despedi-los antes de elaborá-los").
Maria Cristina Magalhães, de São Paulo, após todo trabalho de organização da página brasileira na internet, observa: "A psicanálise no Brasil começa a falar brasileiro" já que a convocação de René Major foi amplamente respondida no Brasil de forma que os psicanalistas brasileiros dela também se apropriaram.
Mas não só de latino-americanos os Estados Gerais estavam cheios, havia os norte-americanos. Teremos ocasião, neste relatório, de voltarmos a eles, aqui, no entanto, trata-se da intervenção de Warren Poland que, buscando uma referência lingüística, identificou em Shakespeare o analista original, aquele que permitiu com que suas personagens pudessem se ouvir a si mesmas (they overheard themselves). Para Poland, a psicanálise seria uma experiência em que o sujeito está frente a frente consigo mesmo e com os outros e onde o analista é testemunha das pessoas. Mas essa experiência não se dá de forma isolada no mundo, ao contrário: o mundo muda a psicanálise e a psicanálise muda o mundo (the world changes analysis and analysis changes the world). Poland retoma então, rapidamente, a história da psicanálise nos Estados Unidos, identificando a APA (American Psychoanalytical Association) como fascista em constante conflito com a New Yorkean Psychoanalytical Society. Observou que se trata de duas tendências: uma, representando o establishment, a outra, o movimento da psicanálise. Avalia a última como vencedora hoje nesse conflito, observando que as pessoas hoje não procuram a psicanálise por dinheiro (como parece ter sido o caso nas décadas anteriores), mas são pessoas da filosofia, da psicologia, da literatura que buscam uma formação por buscarem a psicanálise (they don`t come for money but for psychoanalysis). Sugere que, nos Estados Unidos hoje, se vive um particular momento de mudanças, que já não há o excesso de pacientes como nos anos 1950-60, e que há uma preocupação de tornar a psicanálise mais accessível, em todos os sentidos.
[Aliás, a questão do recrudecimento da clientela e dos preços das sessões retornou em várias intervenções durante todo Colóquio, mostrando por um lado que se trata de um fenômeno universal e, por outro, que alguns psicanalistas ainda têm muita dificuldade em se adaptarem às novas condições das demandas em nossa clínica.] 3
Na Escandinávia, as questões são outras: Per Magnus Johansson, da Suécia, testemunha que a principal questão hoje é o movimento dos psicanalistas pelo reconhecimento do Estado, já que todo tratamento, na Escandinávia, é sustentado pela seguridade social. São enormes as resistências para esse reconhecimento, houve tentativas também por uma inscrição da psicanálise na universidade, mas a dificuldade não é pequena. Conclui sua intervenção observando, ainda, que parte da responsabilidade é dos próprios psicanalistas que não fizeram ainda o suficiente para efetivamente se imporem. Traz uma questão para a comunidade reunida nos Estados Gerais: Com um governo que controla tudo o que é da ordem da saúde, como fazer para que uma psicanálise possa aí se impor?
Do País que sedia o Colóquio, duas vozes se fizeram ouvir nesta primeira mesa: a de Juan-David Nasio e a de Michel Plon. Mais uma vez ficou claro que a psicanálise hoje se posiciona assumindo sua função política. Nasio diz que ela é a única disciplina que tem as condições necessárias de se colocar contra a barbárie. Retoma o discurso de Elisabeth Roudinesco para reafirmar a função do pai a partir de "Totem e tabu" (Freud, 1912), instrumento que permite à psicanálise o exercicio contra o ódio inaugural. Assim, é também responsabilidade de cada psicanalista o curso da história, pois não há fatalidade da história: ela será o que nós queremos que ela seja. Nasio conclui que o imperativo da psicanálise se constrói de uma voz que emana do mais íntimo do ser determinando o sujeito: seja o que deves ser, seja o ser do desejo e assuma sua culpabilidade (sic), onde o supereu seria eminentemente ético. Michel Plon, por sua vez, retoma a própria história dos Estados Gerais franceses, e das resistências que logo se mobilizaram frente à proposta revolucionária desse acontecimento político que precedeu a Revolução Francesa. Convoca os psicanalistas a cuidarem para que essas resistências não vençam o momento tão revolucionário que os permitiu juntarem-se nesse momento.
O debate dessa mesa de abertura ainda contou com várias outras intervenções, algumas mais impacientes e, às vezes, num tom de maior denúncia, e outras que se apresentavam mais como testemunho, relatos de histórias e experiências que os colegas quiseram compartilhar em plenária. É o caso, por exemplo, da fala de Fethi Benslama, da Tunísia, que testemunhou não ser de um país psicanalítico mas que isso não impedia com que, em seu País, houvesse pessoas exercendo a psicanálise, num movimento de se juntarem aos poucos.
Poucas foram, nessa primeira sessão de debates, as intervenções que procuraram uma integração das diferentes falas. Coube a um brasileiro esse exercício, confirmando a fala de Maria Cristina Magalhães de que no Brasil hoje, a psicanálise começa a falar brasileiro, o que lhe permite ter um lugar particular no mundo. Trata-se da intervenção de Antonio Quinet que sugeriu que talvez não devêssemos nos preocupar tanto com o fato de um país não ser psicanalítico - como acabara de testemunhar Fethi Benslama -, pois, o que será que isso queria dizer, mas nos perguntar, até que ponto a própria psicanálise não é, por excelência, poligeográfica, polifônica e poliglota. Essa fala remeteu ao discurso que inaugurara essa mesa - e que se teceria como fio de Ariadne durante os quatro dias -, ou seja, que a psicanálise não se exerce a partir do totalitarismo, mas imprescinde da pluralidade, da diferença e da singularidade, por mais que necessite, como disseram René Major e Elisabeth Roudinesco, das instituições fundadoras e nas quais é possível transmiti-la.
Tarde de Sábado, 8 de julho de 2000: A prática clínica.
Talvez a sessão mais polêmica do Colóquio, a tarde de sábado colocou a céu aberto as várias interpretações que existem atualmente da clínica inaugurada por Sigmund Freud. Pierre Fedida inaugurou a sessão observando a importância da psicanálise hoje, quando a própria prática clínica na medicina se encontra em decadência diante dos trabalhos de laboratório cada vez mais sustentados no discurso cientificista. Se a psicanálise não é exclusivamente uma clínica, certamente a clínica está na psicanálise. E, por clínica, entende-se uma prática que, já com Ferenczi (Fedida fez referência explícita ao texto "A elasticidade da técnica", de Sandor Ferenczi), é bastante ampla.
[Das leituras feitas dos trabalhos sobre o tema enviados à página da internet, chamaram a atenção alguns vetores que poderiam servir para uma discussão posterior. No entanto, foram tantos esses vetores que, por falta de uma direção maior, as discussões acabaram ficando bastante soltas. Avaliação de todos no final dos trabalhos do sábado, os próprios organizadores do evento propuseram, para os dias seguintes, que as discussões pudessem ser um pouco mais dirigidas. O que relato a seguir, é a série desses vetores que, de uma forma um pouco em associação livre, retornam hoje a minha lembrança, das discussões daquela tarde de sábado.]
Alain Vanier, da França, tendo lido os trabalhos para essa sessão, observou seus temas predominantes: ou em nome próprio da experiência singular, ou os textos com referências psiquiátricas, os autores, cada um com seu estilo, expuseram casos clínicos para testemunhar de seu trabalho enquanto psicanalistas. Mas uma coisa é certa, da leitura desses trabalhos Vanier pode reafirmar que também a clínica é campo político, onde o psicanalista se exerce a partir de suas referências. Estas, distinguem-se na maioria das vezes daquelas da psicoterapia, o que Vanier define como: se a psicanálise implica o luto do objeto, as psicoterapias condenam os objetos, o que ainda é diferente de outras práticas frente ao mal estar na cultura, como por exemplo o uso da droga, onde o objeto é proposto como preenchimento de falta.
Miguel Calmon, psicanalista carioca, apresentou um trabalho em que articulou a clínica à teoria metapsicológica de Freud para fundamentar as referências dos autores por ele lidos. Ou seja, ele salientou o fato de que os trabalhos clínicos enviados para os Estados Gerais se articulam com a psicanálise enquanto teoria a nortear o próprio exercício da prática. Foi também na tentativa de verificar as referências teóricas dos trabalhos clínicos que Avenburg verificou a importância do manejo do conceito de transferência nos textos apresentados, conceito que atribui uma especificidade à clínica psicanalítica na contraexperiência da clínica médica. Avenburg, no entanto, também observou uma tendência de aproximar a psicanálise tanto das ciências humanas quanto das ciências biológicas, conforme os autores dos trabalhos.
Diferentemente desses leitores, Jorgelina Rodriguez O'Connor da Espanha, se voltou mais para os trabalhos que testemunhavam de uma clínica com as psicoses. Há desejo do analista na psicose? Como opera o analista frente à psicose? Sugere que se poderia concluir a partir de um ou outro depoimento que, no lugar da interpretação, a tática do analista frente à psicose gira em torno da reconstrução.
Das discussões que se seguiram, vale retomar alguns pontos, pela multiplicidade de colocações, às vezes até contraditórias :
- A clínica é a única coisa que pode se transmitir entre psicanalistas;
- Há diferenças quanto aos modos de intervenção quando se trata de um psicanalista homem ou mulher;
- A clínica psicanalítica é antes de tudo um trabalho, a psicanálise é esse trabalho, e ela vai para além da clínica - observação proferida pelo brasileiro Luis Augusto Celes;
- Os psicanalistas ainda se perguntam quanto à prova da clínica, a evidência do efeito que não está naquilo que o paciente nos diz. Na impossibilidade da resposta, esse colega conclui que o que fazemos na clínica com nosso paciente é um aprendizado mútuo, onde um aprende com o outro;
- Em contraposição ao ponto de vista do primeiro, acima, outro colega disse: "A clínica psicanalítica não é transmissível porque se faz somente entre duas pessoas - e isso seria como fazer um círculo com um quadrado";
- Um colega grego então desabafou: o que está acontecendo aqui é que algo está sendo recalcado entre nós, o que nós estamos recalcando é Lacan, foi ele quem reinventou (what is repressed here is Lacan - who reinvented);
- Finalmente, para acrescentar mais multiplicidade ao conceito de clínica psicanalítica, outro colega, também num desabafo, observou: "Será que só existe análise com uma pessoa? Não tem análise de grupo? Análise de família? E também análise das instituições?"
Esse resumo das intervenções só vem por a nu a sensação de todos os participantes no final dessa sessão: será que vamos conseguir nos entender nos próximos três dias de Colóquio? Sensação que foi muito bem expressa na intervenção de um colega no final dessa discussão: "Será que é evidente o 'nós, psicanalistas'?", ou seja, será que todos aqui entendem a mesma coisa quando se diz "psicanalistas"?
Para distender um pouco o "clima" de inquietação que ficou no final desse primeiro dia de trabalhos, um bom coquetel foi servido no primeiro andar do Auditório, permitindo com que retornasse a alegria do reencontro de tantos colegas que, por força das inserções institucionais de cada um, das suas histórias, dos seus trabalhos, muitas vezes não se viam há muito tempo.
Manhã de domingo, 9 de julho de 2000: "A transmissão da psicanálise".
Nessa sessão de debates, foi certamente a leitura de Erik Porge (da França), que mais retomou os trabalhos enviados para o Colóquio. Lembro que a função dos "leitores" era a de retomar os textos dos autores que apresentaram trabalhos para o Colóquio, via internet, e salientar os pontos que vetorializariam a discussão.
A sessão se inicia com a conferência de Howard Shevrin, dos Estados Unidos, cuja fala não deixa de ser associada à psicanálise americana, ou seja, uma psicanálise a serviço de ideais americanos positivos e estratificadores. Além disso, entende que a transmissão da psicanálise se dá aos moldes da relação mestre-discípulo. Senão vejamos:
Ele discursa sobre a transmissão da psicanálise na relação analista didata e "treinando" (o analisante que estaria em formação) e se diz convencido de que é preciso dar lugar à ciência na formação psicanalítica. Para ele, ciência é um campo que tem por base um conhecimento acumulativo o que, em sua experiência, ele desenvolve tanto como cientista de laboratório quanto como psicanalista clínico. De um lado, a ciência, de outro, a psicanálise como Geisteswissenschaft (sic) e o psicanalista associando ambos os campos. Chega a dizer que analisa tanto no consultório quanto no laboratório.
A análise didática teria por objetivo liberar o treinando de seus preconceitos neuróticos, que poderiam surgir na contratransferência. Eis o que assguraria o estabelecimento do método científico, vital para o exercício da psicanálise. Nenhum físico teria a oportunidade de passar por tais desconstruções de seus preconceitos! Daí que, no fim das contas, em psicanálise o aprendizado se dá por modelagem (sic). Os treinandos não precisariam estudar a psicanálise a fundo, afinal, diz H.Shevrin, são poucos os autores propriamente ditos em psicanálise, é só o analista excepcional que publica. Os analistas americanos quase nunca publicam. Eles passam por um processo de transmissão de conhecimento que se dá nas seguintes etapas:
- transmissão cultural - a partir da farmacopéia coletada pelas pessoas ao longo dos anos, do "conhecimento acumulativo", o que também se verifica nos laboratórios nos Estados Unidos;
- a partir do relacionamento entre sexo e reprodução [não foi possível a esta relatora compreender melhor a questão];
- conforme a relação do Mestre com seus samurais que ensina os métodos que devem ser transmitidos para se construir uma bela espada (sic);
- via distribuição de informações através de exemplos e repetições.
De maneira que contam, nessa transmissão, a sorte de se ter tido um bom mestre - ou analista didata, o professor ou instrutor em sala de aula [pois equivale todas essas coisas] - e a experiência de cada um.
A psicanálise didática é pois equivalente a uma pós-graduação que deveria ser feita com os melhores mestres a guiarem o treinando em suas tentativas e erros. Assim, os analistas talvez seriam simplesmente educadores e outros, ainda, avaliadores de cada análise, cuja experiência se dá tanto a nível da ciência básica quanto da aplicada. É de capital importância para a psicanálise a criação de um corpo de cientistas básicos. Além disso, devemos expor o candidato às áreas vizinhas da psicanálise - levando em conta as humanidades, a filosofia e as artes -, para que ele possa emitir suas próprias idéias. A atividade clínica é um jogo e há várias propostas da psicanálise que podem ser pesquisadas fora da clínica. Shevrin é de opinião de que a teoria geral da mente (sic) dá apoio a todo estudo clínico. Historicamente, o poder do drive (sic), do subconsciente (sic), já está em Schoppenhauer e Nietzsche. Acredita que isso tem seu lugar na formação científica.
É o carioca, Daniel Kupermann que coordenará os debates junto com Claude Lévesque, do Canadá. E ele passa a palavra a Adolfo Benjamin, da Argentina. Este observa, com bastante propriedade que não se pensa igual em inglês, francês, alemão... e que portanto a transmissão implica cada linguagem particular. Lembra o termo Trieb que conteria algo que não pode ser transmitido em outra lingua. Observa:
- Existe transmissão psicanalítica tanto em extensão quanto em intensão. Ela se dá: na terapêutica, na metapsicologia e na teoria crítica da cultura. Toda transmissão estaria ligada à transferência.
- Existe a prática psicanalítica. Sob esse termo se diz tanta coisa diferente que fica difícil entender como estamos juntos, observa. Faz referência explícita aos trabalhos de Philippe Julien e de Joel Birman observando que só estes já mereceriam um dia inteiro de discussões. Observa que de sua leitura pode depreender que a transmissão em psicanálise produz, necessariamente, mudanças subjetivas e que se o sujeito sai da mesma forma que entrou é porque não houve transmissão.
- Quanto à transferência verifica-se que ela impõe um número limitado, com uma certa intimidade. Sem isso não é possível transmissão. Donde, para que haja transmissão é preciso um pequeno grupo, e não apenas um espaço acadêmico, ou um espaço como o da transmissão xamânica.
Finaliza dizendo que a transmissão psicanalítica transmite mais do que o saber, há a transmissão do não sabido, o que evita sermos clones daqueles de quem recebemos a transmissão. Somos diferentes dos que nos precederam pois "A transmissão é o ato fundador do sujeito psicanalítico".
Nessa mesma linha, Erik Porge tece suas próprias observações. As introduz dizendo que a maior parte dos textos sobre transmissão é de autores franceses e que há equívocos inerentes em decorrência da própria transmissão. Há a transmissão NA psicanálise e DA psicanálise. A primeira, é a psicanálise em intensão, se dá no tratamento, na relação do sujeito com o inconsciente, a segunda é a psicanálise em extensão, se dá no espaço institucional, nos congressos, no escrito etc. Distingue-se assim a transmissão de um saber para outros a fim de que estejam informados (doutrina) e a transmissão no setting (no tratamento). A transmissão da psicanálise é diacrônica de uma geração a outra, mas não a transmissão na psicanálise. Dos textos lidos, muitos são o testemunho do que a psicanálise trouxe ao autor.
A transmissão seria sobredeterminada pelas leis do mercado e pelos processos sociais. Observa, por exemplo, que nas universidades cala-se sobre a contratação de clientes; muitas vezes também se cala sobre os processos históricos, como os dos desaparecidos do Chile, Argentina e Shoa.
Introduz então a questão da relação da transmissão com o real. Dela decorre o fato de que instituir uma filiação analítica é negar a análise a partir da transferência e entrar na biologização. Exemplos do fracasso da relação da transmissão com o real teriam sido Anna Freud e Jacques-Alain Miller.
No contexto da transmissão e sua relação ao real avalia: o passe - que suscita formações do inconsciente no só depois (après coup) e implica a sempre reinvenção da psicanálise -, a tr ansferência como inanalisável, a experiência que o sujeito faz de sua própria divisão e o Witz.
Kazushige Shingu, do Japão, e Francis Hofstein da França ainda acrescentam, respecitivamente: que o analista trabalha com o analisando e que Freud já observava que sem analisando não há analista. A falta de analisandos não impediriam a transmissão da psicanálise na universidade mas impediria o tratamento. Francis Hofstein se detém nessa retomada de Freud que, segundo ela, buscava a divulgação. Hoje não dá mais para seguir todas as publicações em psicanálise. Compara a obra de Freud ao Talmud razão de entender que é necessário formar analistas que saibam ler, escandir o texto freudiano. Cada psicanalista é forçado a reinventar a psicanálise. A verdade é singular e o saber só se dá no real através de sua escrita: o matema.
Lembra que a experiência do passe foi um fracasso na EFP (Ecole Freudienne de Paris).
Acrescenta um ponto à análise da relação transmissão e transferência: esta pode ser o principal obstáculo da transmissão quando imaginária pois é um instrumento do poder nas instituições, viciando o processo.
Contra isso, propõe: o lugar excêntrico da psicanálise e dos psicanalistas e a extraterritorialidade dos significantes. Assim advoga pela proposta de reuniões internacionais que estudem o narcisismo das pequenas diferenças.
Daniel Kupermann organiza o debate. As questões que são lançadas podem ser assim resumidas:
- uma observação sobre a função da letra na transmissão;
- há algo que se transmite da psicanálise na universidade e temos que estudar isso mais a fundo, mas certamente ninguém transmite nada do lugar do mestre, ao contrário do que propôs Howard Shevrin, dizia eu; a transmissão se daria no diapasão da intersubjetividade, acrescenta outro;
- René Major retoma a observação de Adolfo Benjamin para falar das diferenças entre as traduções dos textos psicanalíticos, dificuldade que também percebeu no que tange as traduções nesse Colóquio;
- um colega da Austrália observa que nada pode nascer se não for por uma necessidade extrema;
- outro orador retoma o texto de Lacan "A situação da psicanálise em 1956";
- outro, vê na psicanálise na universidade um risco que pode acabar com a psicanálise;
- outro colega observa que se tomamos a transferência como repetição iremos produzir somente clones [certamente esse colega não conhece os dois conceitos de Lacan de repetição: sua vertente automaton e sua vertente tykhê, desenvolvidas no Seminário, livro 11: Os quatro conceitos da psicanálise].
Observa-se novamente uma dificuldade em aprofundar algum ponto para a discussão. Uma colega brasileira - cujo nome, infelizmente, me escapou -, ao percebê-lo, pergunta: será que dá para nos entendermos?
É Daniel Kupermann quem finaliza os trabalhos da manhã, retomando minha observação e enfatizando mais uma vez a questão sobre a psicanálise na universidade. E, questionador, pergunta: Será que a universidade não seria hoje uma reedição dos normal candidates dos anos pós-guerra em que se procurava a formação psicanalítica para se encontrar uma legitimação social? A psicanálise na universidade não deve substituir a formação nas instituições privadas, [com o que, aliás, concordo plenamente]. Há que se criar um debate sobre esse ponto, até porque, como anunciara Elisabeth Roudinesco, essa é uma prática muito brasileira e somos nós, portanto, a levantarmos particularmente essas questões. Nada mal se começássemos a poder respondê-las...!
Tarde de domingo, dia 9 de julho de 2000: As instituições psicanalíticas.
A tarde de domingo abre um novo momento nos Estados Gerais: algo acontece que vetorializa intervenções e público numa mesma direção. É como se todos soubessem que o tema das instituições era propriamente o tema do Colóquio. A sala está cheia. E sem exceção, os presentes sabem que a psicanálise tem algo a dizer sobre a tirania, a ditadura, a tortura, a dominação e que é aí ela mostra sua face revolucionária nos outros laços sociais. E os presentes também sabem que ela aí só tem algo a dizer realmente porque sua história tantas vezes se inscreveu aí, a partir de conjunturas políticas e ideológicas que a transcendem e, até mesmo, a partir de práticas inseridas nas próprias instituições psicanalíticas.
Paula Schmidtbauer Rocha do Brasil, abriu os debates nessa tarde de domingo, tendo sido muito aplaudida pela relação que faz entre a psicanálise e os interesses coletivos. Em seguida, Bernd Schwibs, da Alemanha, observou que os institutos alemães da IPA não vieram ao Colóquio pois contávamos com a presença de somente dez psicanalistas da Alemanha. Retoma Marx para tentar entender isso: os franceses fazem revolução enquanto que os alemães passam pela reflexão. Com efeito, os textos enviados para o Colóquio, da Alemanha, eram críticas em relação à instituição oficial. A questão que Schwibs levanta a partir daí é: por que os críticos não se juntam - fazendo referência a Emílio Modena na Suiça que teria um discurso mais crítico. Retomou, finalmente, o affair Amilcar Lobo e o papel de Ernest Jones na estória.
Em resposta a isso, e prosseguindo na mesma questão, Chawki Azouri lembra que a Escola, tal como proposta por Lacan, subverteu o comitê secreto da IPA na medida em que se submetia a avaliações. Entende os Estados Gerais como uma confrontação das associações hoje e como um agenciamento político, resistências a cada instituição e como uma resistência da psicanálise contra o que vem de fora.
Joel Birman, do Brasil, inicia sua leitura de vários trabalhos com a pergunta: por que oitenta por cento dos trabalhos é de origem Latino-Americana? Que responde com a seguinte hipótese: o fato de terem vivido sob regimes ditatorias permitiu aos latino-americanos um acesso à experiência da transferência que os outros não tiveram. Esta pode estar submetida a um jogo e pode trazer efeitos problemáticos de poder. A estes, associam-se os efeitos da história nazista. Retoma também a questão ocorrida na IPA sob presidência de Serge Lebovici 4, como exemplo. Observando, não obstante, que isso projeta a questão para fora dos limites geográficos, ou seja, isso se liga à lógica universal da experiência do inconsciente, embrenhando-se em toda história das instituições psicanalíticas.
Joel Birman provoca uma salva de palmas quando se pergunta: por que nós, latino-americanos, mais fizemos a experiência do encontro da transferência e da política? Saindo de uma tradição colonial face aos americanos e europeus, hoje procuramos dialogar com os colegas europeus. Para tanto, fazemos um levantamento de nossa história, e cita, como exemplo, o trabalho de Helena Vianna, do grupo "Pró-ética" da IPA e o de Volnovich. Observa que fomos partidários de um fascismo na psicanálise, tanto nas instituições freudianas quanto lacanianas, e que isso hoje é inadmissível.
Juan Carlos Volnovich então acrescenta que os vinte e cinco trabalhos por ele lidos apelam para o potencial renovador da psicanálise. E pergunta, por sua vez: pode a psicanálise existir fora das instituições?
Observa que o melhor da psicanálise se faz CONTRA o establishment psicanalítico, e cita, entre outros, o trabalho de Marie Langer. Essa psicanálise implica o respeito às diferenças e se posiciona contra o canibalismo e a intransigência nas instituições. Determina que estamos fazendo psicanálise quando conseguimos efeitos renovadores na ordem instituída, razão pela qual é preciso confiar no poder subversivo da psicanálise.
Lise Monette, do Canadá, retoma a frase de Helena Vianna "as instituições são o mal necessário" para observar que as filiações paradoxais só se revelam no a posteriori. Diz que nossas instituições são nossas doenças infantis pois todas funcionam do lado da dominação (maîtrise). Elas privilegiam a fidelidade que sustenta o silêncio: o silêncio do candidato, o silêncio diante do socius. Eis, para L. Monette, as patologias das instituições.
Advoga então por outra função das instituições: a de permitirem uma troca do trabalho que é feito na solidão, de maneira também a assegurar a possibilidade de uma memória, contra o esquecimento. Isso porque a psicanálise é essencialmente órfã. Donde, a relação trans- e intersubjetiva numa comunidade deve ser colocada sob a égide da diacronia, produzindo um lugar de encontro que se funda sobre impasses. Isso se propõe com transferências laterais, nômades, a partir de singularidades.
O francês Patrick Guyomard introduz a discussão: Com esse tema, paradoxalmente, entramos nos Estados Gerais - é um comentário a respeito das salvas de palmas que os leitores suscitaram. Diz que já passamos do estado de denúncia, podemos agora passar à troca sobre nossa história comum. O que institui a psicanálise? As instituições; a subversão da psicanálise; a relação da feminilidade com o pensamento psicanalítco (questão que havia sido introduzida por Joel Birman), tendo por exemplo, de um lado, Anna Freud que recalcou a questão da feminilidade e, de outro, Marie Langer que, como sabemos, trabalhava no sentido contrário. Após essa introdução das discussões, não foi por acaso que se passou a palavra a outra mulher de inquestionável importância na história da instituição psicanalítica: Helena Besserman Vianna.
Ela retoma seu livro, cita Margareth Wilfert - a primeira mulher a freqüentar as "Reuniões de quarta-feira" -, e pede licença para ler a carta que acabara de enviar a Otto Kernberg, o atual Presidente da IPA, que lê em inglês: É sua carta de demissão, com o que sela, em ato, o discurso dos Estados Gerais da Psicanálise dessa tarde de domingo.
Um colega da Colômbia intervém, então, para denunciar a fratura de seu País o que impõe aos psicanalistas colombianos uma situação bem diferente daquela do Brasil e da Argentina.
Com um discurso na contramão do momento, um colega da IPA de Zurique critica: aqui estamos assistindo a um ritual: primeiro, parece que o Rio de Janeiro está mais perto de Paris do que Zurique; segundo, parece que há um diabo, chama-se IPA, e, terceiro, há um só deus: Lacan! E prossegue: mas há muitas psicanálises! Razão de propor modificações na IPA, como: abolição do didata, instalação de uma supervisão institucional etc.
E então outro brasileiro, Inácio Gerber da IPA de São Paulo, intervém anunciando o resultado de uma pesquisa feita no Brasil sobre o perfil da clínica psicanalítica, patrocinada pela ABP. A ela teriam respondido setecentos colegas que demonstraram um certo pudor de falar da clínica [pelos resultados da pesquisa lidos, é possível depreender que a pesquisa se restringiu a psicanalistas da IPA]. Teria ficado patente que há dois "públicos" para a clínica psicanalítica: os treinandos e um universo mais amplo, constituido de estudantes de psicologia, psiquiatras... Os honorários cobrados seriam totalmente diversos conforme esses dois universos. Para os candidatos ("treinandos"), somente cinqüenta por cento de seus ganhos advêm de dentro do universo "psi", enquanto que os didatas têm toda sua prática clínica voltada para esse mesmo universo - interno.
Observa que a crise da psicanálise hoje se dá por causa de um furo no próprio alicerce dessa pirâmide.
A seu discurso se associa outro brasileiro, Carlos Castellar. Retoma a questão do que institui a associação psicanalítica. Sugere que, no Brasil, uma reformulação geral é necessária, pois é preciso preparar terapêutas para trabalharem dentro de instituições que fujam dos padrões tanto da IPA quanto da nova IPA lacaniana. Avalia que há dez anos atrás, os consultórios estavam cheios de pacientes e que os psicanalistas viajavam, mas isso não acontece mais. Entende que precisamos conseguir sustentação do seguro saúde para que paguem os tratamentos. Uma proposta prioritária seria retomar a prática da grupoterapia de fundamentação psicanalítica (sic), que a IPA proibiu.
[Com efeito, sabemos o quanto essa prática, generalizada na década de 1970, era importante na receita de um analista didata. Há toda uma geração de analistas que se ressente da falta disso. Ambas essas últimas intervenções demonstram, também, que ainda há analistas na IPA que entendem que a psicanálise se restringe à IPA: um toma o resultado de uma pesquisa feita na IPA como representativo para a psicanálise no Brasil, e outro ainda aguarda o sinal verde da IPA para exercer determinada prática enquanto psicanalista. Não posso deixar de comentar tampouco que ambas essas falas colocaram a céu aberto a máquina hoje enferrujada da IPA, onde os didatas não acompanham a evolução da psicanálise que, há muito, fora da IPA, se adaptou à nova realidade sem, por isso, perder no seu rigor ou em sua proposta revolucionária. Sabemos, como trabalhadores na saúde mental, que não é necessário fazer grupo para que, numa instituição, a psicanálise possa estar ao alcance de muitos, e que quanto mais nos atemos ao legado de Freud - com o auxílio da leitura que Lacan fez de seus textos, por exemplo -, mais nos aprofundamos na própria psicanálise. E certamente não é com outro tipo de terapia que isso poderá ser alcançado no futuro].
Depois da fala de Carlos Castellar, outro colega interveio para dizer que as instituições são necessárias sim, mas que devem se conformar às outras instituições que existem no país. Em resposta a isso, outro colega diz que a instituição como mal necessário é uma mentira necessária contra a qual se insere o desejo do analista. Observa que hoje nos encontramos nas "redes" e não mais nas "instituições". Nestas últimas haveria um crédito insensato à fala e, em contraponto, um desejo de não usar da palavra.
Laurice - outra colega nossa brasileira - depõe sobre o trabalho que Etchegoyen instituiu, quando de sua gestão na presidência da IPA, de uma comissão de ética no Brasil. Uma série de graves problemas teriam sido encontrados e que acarretaram na proposta de modificação dos estatutos. Mas o atual presidente da IPA destituiu todo esse trabalho e reduziu a coisa a um problema de incompatibilidade de gênios entre dois grupos da IPA. Mais uma denúncia, nessa tarde de domingo.
Então, outro colega da IPA, no Peru, observa: nós somos responsáveis por nos submetermos a um grupo de pessoas que querem aparentar uma democracia, e aposta que o movimento gerado pelos Estados Gerais gerará um sentimento de liberdade interna indispensável para o exercício da psicanálise. Acrescenta que um analista deve ser capaz de reconhecer a diferença em relação a outro analista e respeitá-lo. Em resposta ao colega da Colômbia, que interveio no início da discussão, propõe que a América Latina tem mais identidade do que se pensa.
Outro colega faz um paralelo entre a maçonaria e o comitê secreto da IPA que reduziu a psicanálise a um ritual.
Estes dois últimos colegas defenderam, cada um, uma proposta contrária: o primeiro entende que os Estados Gerais da Psicanálise não devem desembocar na criação de uma nova instituição, o que não quer dizer que o movimento deva parar, ao contrário, entende que a criação de uma nova instituição levaria o movimento ao fim. O segundo colega, ao contrário, entende que é preciso criar uma nova instituição na qual nos reconheçamos como colegas, tal como os maçons que se identificavam a partir do diálogo: "Você é um franco maçom?" "Meus irmãos me reconhecem como tal". Sugeriu então que criássemos uma instituição na qual nos encontremos enquanto cúmplices de um assassinato inaugural.
[Desde o início do Colóquio, retornava sempre o tema freudiano do assassinato necessário - do pai. Aqui ele surge para sugerir um ato inaugural conjunto, cuja cumplicidade é necessária para se assegurar as instâncias institucionais e a convivência na estrutura que a instituição representaria].
Annelie Stern então intervém para, mais uma vez, trazer seu depoimento enquanto psicanalista, do tempo em que fora deportada para Ausschwitz, em novembro de 1944. Relata que na época era responsável pela distribuição da comida e enquanto cumpria essa sua tarefa, divulgava o trabalho de Sigmund Freud. Com isso promoveu mais de um sonho entre suas colegas desesperançadas. Um deles representava o campo de concentração no qual uma luz se impunha, e graças à possibilidade de sonhar, de se agarrar a essa luz, houve sobreviventes. Com isso exemplifica a função da psicanálise e um de seus papéis fundamentais no contexto histórico passado e, talvez, futuro.
Após os trabalhos do domingo, a organização do Colóquio convidou o ex-embaixador do Chile sob Allende, Armando Uribe, para a apresentação de um de seus trabalhos: "O fantasma ditador", resumo de seu último livro O acidente Pinochet. Sua fala era dirigida a psicanalistas, ou seja, àqueles que podiam ouvir o que tinha a dizer sabendo que "há um pequeno Pinochet em cada um de nós" (sic). Além disso, Armando Uribe tentou traçar uma genealogia da terrível personagem chilena. De sua fala o que mais interessou a esta relatora foi uma pequena observação assim anotada por ela:
Há países que têm consciência histórica, como os países europeus (a avaliação é do autor chileno), ao passo que há países em que não há essa estrutura milenar e por isso podem privilegiar um consciente coletivo e um esquecimento igualmente coletivo. Por que isso me interessou? Porque contrapõe o coletivo ao histórico, onde o coletivo é um movimento de massa no qual as identificações [imaginárias] - tão bem estudadas por Freud em 1921 - só servem para negar a própria referência histórica. Ao contrário disso, o histórico implica uma estrutura em que cada sujeito pode encontrar suas identificações e raízes e que só pode se dar, portanto, quando não esquecemos. Freud também descobriu isso.
Armando Uribe parte, em sua análise, de um poema épico chileno do século XVI, analisando cada uma de suas estrofes e associando-as com o comportamento do chileno que, assim, encontra uma justificativa para seus atos, ou seja, não enquanto sujeito na história, mas como identificado a um comportamento.
Manhã de segunda-feira, dia 10 de julho 2000: A relação da psicanálise com o social e o político.
Quem apresentou o tópico para os debates foi o argentino Gilou Garcia Reinoso que colocou, por assim dizer, em exergo, a frase de Freud que homenageia Charcot: "Charcot era capaz de olhar para o mal e não ficar cego por isso". Propos discutirmos a relação da psicanálise com as leis da cidade, assim como o fato dos Estados Gerais da Psicanálise surgirem do mal-estar na psicanálise oriundo das barreiras que separam instâncias institucionais, cada uma voltada sobre si mesma. Citou também Todorov: "Entre o monólogo e a guerra prefiro ficar com o diálogo".
A partir daí, apresentou ou tema como dizendo respeito à relação do sujeito com o Outro. Esta relação se institui com o discurso do mestre, é assim que o sujeito se constitui como humano, em que o primeiro Outro é a família. Por via da transferência, então, a própria cena do político implica esta constituição, onde os fundamentos subjetivos do poder sempre abrem brecha para a pergunta: como poder conseguir capturar o sujeito?
Identificou aqui a transferência com a hipnose e o movimento de massa. A diferença é introduzida pela posição do analista - eis nossa tarefa. Mas na instituição o trabalho de desidentificação é difícil, pois a transferência se prolonga. Exemplifica-o com seu próprio caso: Em 1971 se formara na APA/IPA que já cursava em 1969 quando houve uma chamada para um congresso no Brasil sobre a violência e a agressão. Chegando perto da data do evento, porém, o projeto foi desfeito por ameaçar a ordem vigente. Duas propostas surgiram: mudar o tema ou mudar o lugar, e o que foi mudado foi o tema, mostrando que suportamos os ditados da política do poder. Gilou Reinoso sustentou então que cada um tem sua responsabilidade nisso. E o que acrescentou, resumo a seguir:
Estamos vivendo hoje um mito da unidade através da propaganda de uma "aldeia global". O poder político leva em conta o amor, o temor e a crença, como a transferência. A psicanálise deve sustentar a tentativa de recuperar uma parcela de poder instituinte que tenha distância da massa, para permitir o exercício do desejo.
Estamos vivendo um extremo desamparo social, onde a sociedade que exclui parece desejar a morte dos excluídos, no lugar do Outro mortífero. Por sua vez, o fato de não ter lugar no Outro faz entrar os excluídos num círculo maligno de destrutividade. Isso se repetiu inúmeras vezes nesse século de psicanálise. Conta dois exemplos:
- do preso que é libertado depois de passar por todos os infortúnios. É atendido e então pede desculpas. Um dia é encontrado morto no rio. Na casa dele há inscrições na parede com louvor aos militares, como se fora mortalmente abraçado pelo poder do Outro nesse suicídio narcísico, mortífero.
- Os desaparecidos de Buenos Aires, negados. Lembra a frase de Videla: "Não há nem vivos nem mortos, não há desaparecidos", fazendo desaparecer os desaparecidos. Quem interrompe o silêncio são as mães que, originalmente foram chamadas "as loucas de maio". A psicanálise está aí para sustentar esse trabalho cujo paradigma é o das avós procurando recuperar as crianças seqüestradas para lhes transmitir a sua história.
Eis a função da psicanálise no social e no político, não permitir que se exclua o sujeito da ordem do direito. Para finalisar, citou Maurice Blanchot: "Eu não sei, mas sei que terei sabido", [ou seja, há sempre algo que não pode se inscrever no saber, mas é preciso poder aí inscrever o que se escreve].
Em seguida, Helena Besserman Vianna também começa sua fala citando, desta feita, Raymond Aron: "O espírito livre não pode passar sobre os acontecimentos e os cernir com um olhar indiferente". E retoma então o lugar da psicanálise frente ao discurso do capitalismo observando que a linguagem dos mercados hoje tem poder incondicional e absoluto, sem ter em vista senão o lucro de forma que a globalização - também citada por Reinoso -, é uma realidade apenas para o capital (conforme J. Habermas). Diz que os habitantes do mundo - dos quais, cinqüenta por cento na América do Sul -, imersos na desigualdade social, aguardam a expansão de espaços democráticos e éticos.
Para pensar o lugar da psicanálise frente a isso, retoma o tema já antes tratado de que houve um torturador na IPA, e até hoje a IPA não deu uma solução explícita para o caso, mesmo depois de vinte e cinco anos. Observa, com Nelson Rodrigues, que o óbvio tem que ser sempre repetido. E à pergunta: será que podemos separar o pensamento psicanalítico da ética do cidadão? Responde: o psicanalista, quando solicitado, deve tomar partido na política; não ficar indiferente aos impasses; participar, nos limites de seu conhecimento, da vida social e política de seu país e do mundo. Com Umberto Eco observa: a alienação política e social é pior que um delito, é um desperdício. Retoma o trabalho do grupo "Pró-ética" contra distorções e falsificações e observa: conjugar subjetivismo com objetividade é ficar livre para falar e pensar. Se ficamos só no subjetivismo e em slogans abstratos, perde-se. Da mesma forma que Reinoso, entende que somos responsáveis pelo que não fazemos. Por isso, apesar do analista dever separar o que é privado do que é público, ele não deve se omitir do que é público. Pois a psicanálise não pode se esquivar, em nome de sua neutralidade, da ética pública. Propõe uma interlocução com outros campos do saber para diminuir as desiguldades sociais em todos os continentes. Termina sua fala citando Baldwin: nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modifiado se não for enfrentado.
Não me foi possível assistir ao relatório de leitura de Esteban Ferrandes Miralles, da Espanha. Mas pude estar presente ao de Regina Orth de Aragão, do Brasil, que teceu seus comentários em torno da questão da clínica e dos novos sintomas, levantando a questão do lugar do psicanalista fora do espaço clínico, principalmente educacional. Ou seja, se perguntou sobre o trabalho psicanalítico fora do consultório, atuando no espaço social: como o trabalho psicanalítico pode permitir uma reconsideração do coletivo, de que forma? Para respondê-lo defendeu a necessidade de uma reinterrogação da psicanálise além de uma compaixão [a expressão utilisada por Regina foi: sofrer com o outro].
Nessa mesma direção humanista, S.Pena definiu: a psicanálise é uma ciência humanista, razão dela não estar livre de valores nem de ideologias. Distinguiu o fato do meio social e polítio ter impacto sobre as sessões enquanto mudanças ambientais e o fato do analista não dever usar suas crenças para um endoutrinamento.
Carlos Castellar coordenou os debates. O primeiro a intervir se apresentou como filósofo e universitário. Disse que há vinte anos a psicanálise produziu efeitos sobre os filósofos, citou Foucault e Deleuze. Perguntou então se a filosofia era ouvida pelos psicanalistas. O segundo a intervir disse que há uma dificuldade do psicanalista encontrar seu lugar no campo social pois, o saber a ser sempre inventado está no campo do tratamento - como ligá-lo ao campo social propriamente dito? A essas perguntas se associou a brasileira Denise Maurano: o que é propriamente a ética de que falamos? Interveio então uma colega que era da IPA de São Paulo até aquele momento, observando a importância que dera à fidelidade à língua de divã (sic) que freqüentou. Isso lhe dava as razões suficientes de permanecer na IPA pois foi muito ajudada por um certo número de colegas na SPP. Mas agora, depois de ouvir Helena Vianna, decidiu não mais ser boazinha (sic), naquele momento demissionava da IPA pois já não acreditava mais que isso implicaria que estaria desertando ao ir trabalhar em outro lugar.
Começam então alguns depoimentos sobre trabalhos feitos fora dos consultórios:
Outra brasileira trouxe seu depoimento sobre um grupo de rap na periferia de São Paulo, onde trabalha. Testemunha que os membros desse grupo não fazem apelo ao pai mas aos irmãos, pois são excluídos e criam um lugar juntos, entre eles. Eis como eles fazem valer o pai, através dos irmãos. Outro colega observou que para poder trabalhar com as Mães da Praça de Maio e com os guerrilheiros em São Salvador, foi necessário uma liberdade doutrinária, razão de concordar: é preciso escutar os filósofos. Entende que há uma potência subversiva na psicanálise mas que é preciso ficar atento: a psicanálise não vai melhorar muito o mal-estar na cultura. Mais outra interlocutora depôs sobre um atendimento social por ela fundado.
Então, entusiasmado, um colega comparou os Estados Gerais da Psicanálise com um maio francês, fazendo referência ao movimento argentino.
Talvez de todos os depoimentos dessa manhã de segunda-feira, o que mais comoveu a todos os presentes foi o de um colega austríaco que interveio depois da fala de uma norte-americana, psicanalista e socióloga, como disse, segundo a qual é muito difícil pensar sociologia sem fazer referência a um "eles" e "nós" [ou seja, os excluídos e nós, que nos vemos como incluídos]. O colega da Áustria disse que lá os psicoterapêutas estão comendo os analistas e o produto dessa refeição é oferecido aos pobres de espírito. Pediu socorro aos Estados Gerais, literalmente, por já não saber mais o que fazer diante da situação.
[Infelizmente não me foi possível assistir à sessão de segunda à tarde, sobre Psicanálise e arte, literatura e filosofia. Mas pude estar presente à Conferência de Jacques DERRIDA, às 18:30hs de segunda-feira.]
Segunda-feira, às 18:30 hs: Conferência de Jacques DERRIDA.
Por mais de duas horas, o filósofo francês Jacques Derrida demonstrou - em ato - a importância da conexão da psicanálise com a filosofia, ou seja, analisou, como filósofo, um texto freudiano (e sua interlocução) para pensar duas questões do mundo atual: a questão da soberania e a questão da crueldade. Os textos analisados foram a correspondência de Freud com Einstein, sobre a guerra. Enquanto aguardamos a publicação de sua conferência, o que segue é um resumo das notas que pude fazer, certamente falhas diante da riqueza de sua articulação.
A questão que norteou a conferência diz respeito ao que a psicanálise tem a fazer, hoje, ou seja, no mundo atual. E a primeira resposta levantada por Derrida estaria na tensão entre resistência e revolução. Propõe uma série de três revoluções: a francesa, a psicanalítica e a técnico-científica, não sem observar que, por um lado, há sempre uma revolução em outra revolução e, por outro, há um fracasso na psicanálise. Se hoje estamos na era da world wide web, os Estados Gerais da Psicanálise poderiam presentificar essa segunda revolução na terceira (a da www que representa aqui a revolução técnico-científica). Para pensá-lo, Derrida associa estes Estados Gerais com aqueles, da revolução francesa. Para isso, pergunta: O que a hierarquia suposta em 1789 como verificação do poder tem a ver com o que está acontecendo aqui?
Pergunta: quem aqui representaria a nobreza, o clero, o terceiro estado da psicanálise mundial, e melhora, essencialmente européia? Diz que haveria sentido imaginar a equivalência com o Terceiro Estado, de um lado o clero (e aqui faz um chiste, em francês: les prêtres, os padres), de outro, os intérpretes (interprêtes) psicanalistas.
Qual é a queixa da psicanálise hoje? Se o Terceiro Estado da revolução francesa se recusava a fazer o luto do soberano, do que a psicanálise recusa hoje a fazer seu luto? Se as promessas continuam suspensas, o que exprime a morte? Quem é o destinatário desse movimento que aqui se constitui? E de que Escola os psicanalistas aqui se autorisam de se autorisarem?
Sempre houve institucionalizações problemáticas. Entre os psicanalistas há uma ausência radical de consenso quanto à técnica, ao jurídico, à ética, à política. Tais como os Cahiers de doléances, conjunto de textos com as queixas que a Assembléia dirigia aos soberanos d`antanho, as queixas hoje podem concernir o que está fora: os campos médicos e dos estados, a recessão da demanda, a ideologia, a biologia... demonstrando a incapacidade da psicanálise de se inscrever na mundialização por causa de sua origem européia, por exemplo. Na ausência de um destinatário comum, os Estados Gerais da Psicanálise têm a tarefa de se instituirem como primeiro e último destinatário de suas próprias queixas, devendo produzir seu próprio destinatário. Em conseqüência, surge uma nova pergunta: Será que há aqui uma transferência? O lutar do destinatário transferencial foi deixado vazio e Derrida aconselha: desconfiem da autonomia e da liberdade suposta.
O primeiro título para publicação da carta de Freud a Einstein (setembro de 1932) teria sido, segundo Derrida, "Direito e violência" ("Recht und Gewalt") [- binômio que introduz, efetivamente, as articulações freudianas sobre o tema proposto por Einstein (cf. terceiro parágrafo da carta de Freud)]. Com efeito, já em Kant não há direito sem a possibilidade da coerção, força e direito estão sempre juntos. [O direito é, diz Freud, o poder de uma comunidade e a única diferença em relação à força que um indivíduo utilisa para sobrepujar outro é que, neste caso, a força não é mais de um único, mas da comunidade. A soberania distingue os poderosos dos subordinados, diz Freud, e o direito é feito para os poderosos - o que implica em novas tensões. Para um afastamento seguro da guerra é preciso que os homens se juntem em prol de uma violência central (Zentralgewalt), que sobrepuja todos os conflitos. Mas também essa autoridade assim instituida sói constituir-se com a força. Uma única exceção seria a soberania produzida pela cultura, a partir do poder da comunidade, diante da qual as forças pulsionais são enfraquecidas].
Einstein, em sua carta, espantado diante da vontade de guerra, sugere a existência de uma psicose de destruição. Freud teoriza aqui a pulsão de dominação, para além do princípio do prazer. Se a pulsão de poder é mais antiga, nenhuma política poderá anulá-la.
Derrida então saúda os Estados Gerais da Psicanálise e introduz nova pergunta: o que está atrás da cena desse teatro? Propõe uma auto análise dos Estados Gerais, e que ela comece com uma questão de princípios; a psicanálise conta com princípios. Levanta a questão das formas inéditas de crueldade às quais o século XX assistiu. Propõe um para além da pulsão de morte, ou seja, uma pulsão de poder performativo para organizar o simbólico [freudianamente, só pude acompanhar Derrida aqui, entendendo a possibilidade de Eros sobrepujar, mais uma vez, a pulsão de morte, na tentativa de unir aqueles que aqui se perceberam convocados em prol de um ato performativo de apelo, como ele mesmo disse. Particularmente, não consigo conceber a idéia de um para além da pulsão de morte no sentido freudiano do termo, da mesma maneira que Lacan pode dizer não haver Outro do Outro]. Se há soberania de estado hoje, é evidente que, por transmissão da Europa, os Estados Unidos da América são os únicos a mantê-la. Cita Walter Benjamin e seu texto "Zur Kritik der Gewalt", que tange o direito soberano de punir pela morte - vide a pena de morte até hoje nos EUA. Para corroborar ainda o texto de Freud cita os horrores da Primeira Guerra cinicamente justificados em nome do patriotismo.
Derrida formula: a psicanálise é tanto impossível de apagar quanto mortal. E associando mais uma vez esse momento com o de 1789, pergunta: se quem convocou os Estados Gerais em 89 foi o rei e então, com os Estados Gerais ele foi morto, impondo o fim do poder soberano, quem é o rei hoje que está se suicidando? - pergunta que ficou no ar, sem explícita resposta, de maneira que cada um pode dar a sua. Promulga o direito do homem à psicanálise. A partir do texto de Freud aponta que a revolução psicanalítica, com um século, tem por função combater a crueldade com um combate indireto por saber que a crueldade é indestrutível. Com Freud observa que a psicanálise não tem como questionar, desvalorizar a crueldade, pois ela sabe que sempre esteve aí. Frente a isso, cabe uma última pergunta: de que maneira a psicanálise se situa eticamente fora dela? [particularmente acho que aqui a psicanálise deve poder responder ao filósofo] e ele tenta responder a isso: a tarefa para o amanhã implia um ato - constatativo - sustentado no saber teórico e descritivo, e um ato performativo: devo fazer o que posso. A psicanálise pode levar em conta a totalidade do saber, inclusive as mutações técnico-científias e, com isso, não se trata somente de saber mas, sobretudo, de reinventar as normas da psicanálise, em cada contexto: do mercado, do campo político e jurídico, no horror dos genocídios. Então é preciso sempre poder falar a partir de um corte que sempre está lá. "Eu posso", como ato de fundação da tarefa da psicanálise irá então colocar sempre em marcha tanto o ato constatativo quanto o performativo.[Não foi pois pequena a tarefa que o filósofo atribuiu aos psicanalistas nesses Estados Gerais da Psicanálise].
Manhã de 11 de julho de 2000: A relação da psicanálise com o direito, as neurociências, a biologia e a genética.
[Tendo me atrasado, comecei a acompanhar as discussões a partir da fala de Amy Cohen da França, não pude pois assistir à fala de René Major]. Amy Cohen observa que a concepção da linguagem é diferente para biólogos e psicanalistas. Mas essas diferenças não impedem que haja possíveis intersecções entre os diferentes campos. Por exemplo, a questão do enxerto e do transplante que implica uma transferência de um órgão para outro, tange a questão do self e do não self (sic), fazendo frente ao externo e à qualidade de sujeito que somos.
Athanase Tzavaras, da Grécia, inicia sua fala de forma burlesca, dizendo que é necessário que sejamos bonzinhos com os outros, devendo apertar as mãos dos neurocientistas e começar nova vida. Mas observa que os textos que leu eram bem mais pessimistas quanto a uma possível relação entre a psicanálise e a neurociência, na medida em que os conceitos e lugares de trabalho são híbridos. Acha que, cada um com seu método vai chegar lá, tanto neurocientistas quanto psicanalistas.
É da opinião de que os psicanalistas têm um complexo de inferioridade desde a época de Freud. Tentam provar que a psicanálise é uma ciência canônica, tal a física, mas nem os próprios cientistas sabem o que é a ciência, apesar de pensarem saber. Baseiam-se numa filosofia espontânea, o que vale também para os psicanalistas. Mas há bastante tempo, pelo menos nos países anglo-saxãos, a formação filosófica de base é nula.
A questão, diz, é que as teorias científicas têm um problema com as metáforas. Os psicanalistas estão mais ou menos advertidos quanto à metáfora. Mas as ciências cognitivas, a inteligência artificial, as neurociências não têm idéia do que é desejar, se comportar, querer, por não saberem o que é uma metáfora. Assim, acabam por manter um discurso esquizofrênico a respeito disso. Querem comer tudo e acabam comendo o próprio texto do cardápio. Seria o caso, por exemplo, de um casal com sessenta e cinco anos de casamento que chega a um advogado pedindo divórcio. E diante da surpresa e pergunta do advogado, respondem: esperamos até nossos filhos morrerem para não traumatisá-los.
Georg Christoph Tholen da Alemanha quer falar da lei. Diz que não há necessidade de uma garantia institucional para a psicanálise. Cita o texto de 1914 "A história do movimento psicanalítico" em que Freud situou a psicanálise entre a ciência humana e empírica. Pergunta: em que consiste a lei? Na IPA, por exemplo, a metapsicologia deu lugar a uma mistura de discurso jurídico e psicoterápico, por uma auto-imunização e por um "juridismo", deixando para trás as próprias leis da psicanálise. Dentre elas, a da interpretação dos sonhos que permitiu a Freud revogar uma lei médica segundo a qual um sonho é uma doença ou um malfuncionamento. A lei que Freud introduz é que no sonho o desejo deve ser satisfeito como se fosse uma necessidade.
A lei da psicanálise é que há uma alteridade inconcebível, já abordada por Freud em 1895 com a noção de Nebenmensch, cuja presença é a própria perda que estruturará o sujeito.
Outra lei da psicanálise é a do complexo do desmame - o termo por ele utilisado em alemão é Entwöhnungskomplex -, que ele exemplifica com o fato da menina dever renunciar ao que jamais teve [o que certamente remete bem mais ao complexo de castração, não? De qualquer maneira, é interessante notar que o mesmo analista que se preocupa em precisar a noção intraduzível de Nebenmensch, confunde o complexo de castração com um complexo que não se sabe muito bem de onde saiu...!]
Outra lei, seria a lei simbólica sustentada pela função paradoxal [sic] do pai. Situa no fim do comunismo o rompimento com o Pai Nosso e termina sua fala citando Pierre Legendre que denuncia as atuais promessas de felicidade. Denuncia, finalmente, um esvaziamento da função paterna por causa do alargamento do imaginário no registro técnico e biológico.
O colega Sergio Benvenuto, da Itália, anuncia que sua fala não refletirá o pensamento da maioria dos presentes e que não acha que somos uma comunidade porque falamos tantas linguagens diferentes... Diz que a psicanálise resistiu à objetividade científica da língua inglesa mas, exemplifcando com um caso que se beneficiou de antidepressivos, acredita que precisamos ser gratos aos neuropsiquiatras. É preciso cultuar a gratidão em vez de nos queixarmos, como denunciou Derrida.
Há três movimentos hoje, segundo ele:
- a anglo-americanização;
- a globalização, que é a anglo-americanização ao quadrado, e
- o capitalismo, a ciência e o liberalismo.
Os psicanalistas vão contra esses três poderes, diz. A ciência traz muito prazer mas também muito sofrimento, vide Hirochima e Chernobil. Mas os psicanalistas têm dificuldade em reconhecer o poder que essa trindade tem de nos trazer bem estar e gozo, talvez porque esse poder também nos humilha. Mas essa dicotomia é própria da democracia e a psicanálise é efeito e causa da democracia. A própria vida sexual é difícil porque é difícil admitir o quanto precisamos do outro.
Freud não tinha nada contra a anglicisação, mas tinha a idéia de que a psicanálise é uma ciência objetiva do sujeito. Ele apostou em algo simples: o significado subjetivo aliviando o sofrimento neurótico.
Termina sua fala perguntando, em referência à conferência de Derrida: que rei aqui é regicida? René Major? A psicanálise? Talvez a experiência psicanalítica seja um gozo para muitos, mas a psicanálise tem uma dívida para com o mundo moderno onde é tão difícil sobreviver sem lamentações ou queixas.
Então intervém Jean-Jacques Moscovitz, da França, e propõe duas frases de Freud em exergo: "O primeiro dever do vivente é o de suportar a vida" e "Responder a um insulto, através de armas, é da ordem da barbárie, com palavras... talvez a civilização". Observa que Freud tirou a medicina do campo do biológico, que a levou ao pior: em Ausschwitz eram os médicos que faziam a triagem.
Chama a atenção para uma mudança no código penal francês ocorrida em 1994: o crime capital já não é o parricídio mas o crime contra a humanidade. Isso introduz uma questão: se o crime contra a humanidade é definido como atentado contra toda uma geração e cultura, a destruição é proibida mas fica a pergunta: de que forma é possível o parricídio não ser capital se, em princípio, isso atenta, justamente contra toda geração e cultura como mostra a psicanálise? O crime capital já não é mais de um sozinho contra um outro sozinho, mas o crime do coletivo. Moscovitz aí entrevê a borda de um certo nada (néant) e entende que o direito deveria vir ter com o psicanalista.
Retoma os processos de Nuremberg e observa que os crimes dos médicos que faziam experiências com seres humanos não foram julgados no grande processo, só no pequeno. Até que ponto isso não continua, de forma que possamos dizer ainda hoje, que continuamos no genocídio. Este está disfarçado sob a alusão de termos julgado aqueles que quiseram destruir uma geração e uma cultura.
Com isso, inicia o debate.
É um colega colombiano que toma a palavra, denunciando uma guerra civil que já dura cinqüenta anos e uma intervenção americana iniciada esse mes. Convoca os psicanalistas a ajudarem-nos a simbolisarem, para não ficarem loucos.
O colega brasileiro, Mário Pereira, associa aos crimes contra a humanidade disfarçados mas atuais, a miséria. Outro colega brasileiro, Rubens Coura, observa ser impossível para ele ser grato ao mundo moderno porque ele é responsável pela captura e fascinação do discurso médico. Sugere que no Brasil a psicanálise é uma mercadoria e que essa mercantilização empobrece a psicanálise [mas muitos outros depoimentos nesses Estados Gerais já demonstraram que há grande riqueza na psicanálise no Brasil, com várias práticas que enriquecem hoje sua teorização]. A sessão é interrompida.
Tarde de terça-feira, 11 de julho de 2000: Perspectivas.
É outra brasileira, Caterina Koltai, quem toma a palavra conclusiva, no que será seguida por alguns. Observa: há três sofrimentos na América Latina: a miséria, a ditadura e a falta de psicanálise. A psicanálise deve ir além do politicamente correto e o analista não pode se dar ao luxo de nada querer saber do que está acontecendo em torno dele. A falta de psicanálise diz respeito ao fato de que ainda há analistas que deixam de atender alguém por impossibilidade de pagamento, encaminhando esses sujeitos para analistas iniciantes quando, no fundo, precisariam de alguém com experiência. Outro sintoma de falta de psicanálise é a dificuldade em falar da clínica. Apesar de não pertencer a nenhuma instituição, acredita que sejam necessárias. Não como mal, mas como lugar em que se possa falar da clínica com seus pares. Desde que isso não signifique entrar numa seita, como num poder totalitário. O fato de haver múltiplas instituições corresponde à divisão, tal como é necessária ao próprio sujeito na psicanálise. Entende que as instituições devem se tornar mais democrátias, criativas e produtivas para que cada um possa aí afirmar sua singularidade a partir de sua própria experiência e então ser passível de reconhecimento. Entende que isso também implicaria uma pluralidade teórica nas instituições. A democracia, ensina, é o lugar do poder deixado vazio.
Acha que a existência de instituições facilita a internacionalização, mas não como o modelo de sede e suas filiais, e sim, como Estados Gerais, em que cada analista, de qualquer lugar do mundo, possa tomar a palavra. Os analistas quando têm idéias e transferência não conhecem fronteiras geográficas. Acha que cada vez mais o diálogo entre o novo e o velho mundo aumenta e acolhe o estrangeiro.
Theodore Jacobs, de Nova Iorque, achou que o mais significativo no Colóquio foi a postura moral de seus participantes, contra o mal. Normalmente via os psicanalistas tomando uma postura "neutra". Diz que precisamos muito dessa nova atitude na psicanálise para levantar a consciência do mundo para os impulsos assassinos que existem no interior de cada um já que o homem é fundamentalmente agressivo (sic). Acha que não devemos demonizar os outros sem olhar para nós mesmos. Razão de não estar de acordo com a reação da platéia frente à fala de seu colega americano (na manhã de domingo).
Diz que nos EUA há uma espécie de crise na psicanálie, ela encolheu. Mas isso lhe deu também um renascimento pois não eram tão eficazes como poderiam ter sido. Diz terem ainda muito a aprender sobre como tornar nosso campo mais eficaz, já que o público americano começou a dar valor à eficacidade terapêutica.
Saul Peña Lima se levanta contra a destrutivade social e política disfarçada sob o modelo do desenvolvimento e que sistematiza os crimes que ameaçam a humanidade. A crueldade, livre de restrições, marcada por moralismos e identificada à autoridade divina é uma patologia muito maior do que toda patologia que está na soma dos sanatórios do mundo, é uma perversão.
O analista deve se posicionar eticamente quanto a isso, ou seja, responsabilizar-se pelo destino. Isso porque a psicanálise, se atua pela via de levare, não deixa de atuar pela via de pore, mesmo se a psicanálise, como ciência conjectural, se interessa mais pelos conceitos do que pelas leis. Responde ao colega americano que se a autocrítica é a melhor crítica isso não implica que a crítica dos outros não seja tão boa quanto.
Para ele, esse nosso encontro tem um significado e uma transcendência históricas. Que todos os analistas sustentem a liberdade, que todos possam escolher esta ou aquela instituição e que jamais se considerem os donos da verdade absoluta, são seus votos para o final desse encontro diferente. Diz que será importante o que faremos desse Colóquio em nossa história.
Silvia Fendrik, da Argentina, se refere inicialmente à intervenção de Caterina Koltai. Em seguida, pergunta a partir da conferência de Derrida: do que nos queixamos? Da impossibilidade de dar respostas, do narcisismo dos psicanalistas, da falta de dinheiro. Com isso resistimos a decifrar desafios, observa. Diz que a psicanálise deve saber fazer com a cultura de nossa época e não se queixar disso. Diz que sentiu falta de um debate sobre a sexualidade e a crueldade nas instituições e observa: a máxima expressão do ódio é terminar com a sexualidade e a máxima expressão da crueldade é a indiferença.
Então fala Chaim Katz, outro brasileiro. Põe em tensão o desejo de um ideal da unidade versus o desejo da diferença. Esse desejo da diferença vem desde o Moisés de Freud que descreve o fundador do judaismo como não judeu. Eis seu lugar: radicalmente outro, e esse é o lugar também do psicanalista.
No mundo de hoje é preciso ao psicanalista criar para fazer frente ao fato de que quando o homem está no horror ele não pode pensar. E isso tem suas várias matizes que se estendem até a nova política eugênica, ou seja, a associação entre o projeto do genoma com a segregação econômica. Mas, neste momento, aqui, estamos menos desamparados, por causa desse encontro nos Estados Gerais.
E então Michel Plon toma a palavra para propor: a criação de uma revista cibernética permanente, com o objetivo de se constituir uma comunidade de pesquisa, livre, e com assinatura anual. Essa proposta é votada em plenária e aprovada pelos presentes.
Outras propostas são levantadas, a de Estados Gerais permanentes e a de outro encontro, daqui a dois anos. Não foram votadas, deixando em aberto o futuro dos Estados Gerais da Psicanálise.
3. Algumas conclusões pessoais.
Foi de grande importância para esta relatora ter tido a oportunidade de participar desse Colóquio, ou acontecimento. Ficou patente que, em termos de Psicanálise, o Brasil hoje é referência no mundo, não só pelo número de participantes (segundo a estatística divulgada no local, do total de participantes um sexto era de brasileiros, ou seja, 210 pessoas), mas pelas questões que trouxeram e pelas contribuições aos debates. O Brasil também foi citado por colegas de outros países como País em que a convocação dos Estados Gerais encontrou grande eco, haja vista a freqüência diária à página na internet. A importância do Brasil finalmente mostra ter sido reconhecida internacionalmente quando nos damos conta de que o português foi uma das quatro línguas oficiais do Colóquio, com tradutores intérpretes em todas as mesas. É o primeiro evento internacional fora do País, na Psicanálise, em que esta relatora assistiu a isso.
Se por um lado isso não deixa de ser motivo para nos felicitarmos, por outro, acho, aumenta nossa responsabilidade. Talvez, como disse Joel Birman, porque temos uma experiência da transferência que outros países não tiveram, por termos vivido sob regimes ditatoriais, ou ainda, como disse outra colega, por termos uma experiência de tantos anos desse maldito triunvirato: miséria, ditadura e falta de psicanálise. Questão de grande incidência durante todo Colóquio, a responsabilidade dos analistas na valorização dos outros laços sociais 5 frente a discursos esquizofrenizantes - como pode observar Athanase Tzavaras, da Grécia em relação ao cientificismo - e o discurso do capitalista - como retomou Helena Vianna em sua alocução -, é tal que não podemos nos manter mais no mero campo da denúncia, muito menos na queixa. Somos responsáveis tanto pelo que fazemos quanto pelo que não fazemos, ou seja, por nossos fracassos e sucessos e tampouco podemos ainda atribui-los a um Outro institucional em nome de uma transferência de divã, como foi chamada, pois isso implicaria uma transferência com as instituições psicanalíticas à imagem das neuroses infantis.
Mas para assumir essa responsabilidade, algumas direções foram levantadas, eis o que entendo que deva agora ser aprofundado.
Em primeiro lugar, um afinamento teórico. Não é possível avançar na psicanálise sem levar em conta que se trata de uma disciplina que vai para além da clínica, como alguns observaram, e se constitui solidamente se não numa ciência como a física, pelo menos num corpo teórico a ser verificado a cada vez para poder ser transmitido. Não é de todo descabida a sugestão de Shevrin de que seja importante à psicanálise a criação de um corpo de cientistas básicos se a associamos à idéia de Lacan de matemizar a psicanálise para sustentar seu definitivo estabelecimento no rol dos saberes que se desenvolverão nos próximos séculos. E para quê?
Para fazer frente, justamente, aos outros discursos que não fazem laço social, e dos quais a crueldade foi o mais denunciado nesses Estados Gerais. Crueldade muitas vezes transvestida, na perversão que dissimula seus poderes, tanto na política e no cientificismo, quanto na economia, através da segregação e da soberania. A grande maioria dos participantes vê, na psicanálise, a forma mais eficaz de fazer frente à barbárie porque a psicanálise leva em conta a impossibilidade do aniquilamento da pulsão de morte. Ou seja, é por saber que existe, é por conhecer sua força que a psicanálise pode sempre resistir a isso sem renunciar ao discurso da ciência, sem renunciar ao fato de que é uma das três revoluções do final desse milênio: a político-econômica, a psicanalítica e a técnico-científica.
Em segundo lugar, uma verificação das possibilidades para suas inserções práticas. Na clínica - para além da mercantilização -, nas próprias instituições psicanalíticas e nas universidades, sem que uma se substitua a outra em nome de uma tentativa de reeditar uma legitimação social externa ao próprio controle que exercem aqueles que têm transferência com a causa freudiana. Donde também a importância das instituições psicanalíticas enquanto espaços que arejam a solidão de nossa prática, local de troca entre pares e jamais, nunca mais, local de políticas totalitárias. Troca que se dará também na verificação dessas mesmas instituições, nas produções escritas e faladas, nos espaços interinstitucionais e internacionais, já que a psicanálise foi promulgada nesses Estados Gerais como sendo poligeográfica, polifônica e poliglota.
Em terceiro lugar, finalmente, o lugar do analista. Que sua verificação vá do dispositivo do passe ao vínculo que tem com a ciência, é fundamental que discutamos quem é o analista pois aqui realmente ainda não nos entendemos. Senão vejamos a lista de algumas definições que surgiram durante o Colóquio:
- Poland: o analista é testemunha das pessoas. O primeiro foi Shakespeare;
- Nasio: o imperativo da psicanálise é: seja o que deves ser, o ser do desejo, assumindo para tanto sua culpabilidade atribuída por um supereu que é eminentemente ético;
- Fedida: a clínica psicanalítica é a únia que pode fazer frente a uma medicina engolida pelos laboratórios;
- Vanier: a própria clínica é um campo político, onde o analista se exerce a partir de suas referências;
- Sabsay e Avenburg: o analista é o único que trabalha com a ética e a transferência;
- Maurano: o que entendemos por ética?
- Shevrin: o analista é um mestre;
- (eu mesma): a psicanálise jamais se transmite do lugar do mestre;
- O'Connor: a tática do analista frente à psicose gira em torno da reconstrução;
- (?): o analista e o paciente fazem um aprendizado mútuo;
- colega 1: a clínica é a única coisa que pode ser transmitido em psicanálise;
- colega 2: A clínica psicanalítica não é transmissível porque se faz somente entre duas pessoas;
- colega 3: A clínica é intransmissível porque tange o objeto a;
- colega 4: para além da análise de uma pessoa, há análise de grupo, de família, e de instituições;
- Katz: o lugar do analista é radicalmente outro.
De qualquer maneira, aprofundar a questão cuja direção foi apontada por Erik Porge: há uma transmissão NA e outra DA psicanálise, há psicanálise em intensão e em extensão e se há transferências imaginárias elas são somente obstáculos, nas instituições psicanalíticas, para a transferência real, única versão que resgata, sempre novamente, a reinvenção do analista. Que as instituições psicanalíticas possam sustentá-la no lugar de tantas vezes impedir o seu desenvolvimento.
Notas
(1) Psicanalista, Coordenadora do Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, membro de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-Rio de Janeiro, da Associação Fóruns do Campo Lacaniano e da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano.
(2) O trabalho por mim apresentado: "O discurso do capitalista e o mal estar na cultura" foi incluido dentre tantos outros que foram redigidos para o Colóquio, na rede www.psychanalyse.refer.org/propos.html - página da internet dos Estados Gerais da Psicanálise -, entre os textos listados sob o tema 4: "A relação da psicanálise com o social e o político".
(3) Entre chaves [...] introduzi, aqui e ao longo do que segue, contribuições próprias a essa parte do Relatório.
(4) Tal como relatada no livro de Helena Vianna.
(5) Refiro-me aqui aos discursos do Mestre, da Histérica e da Universidade que, ao lado do discurso do Analista foram conceituados por Lacan como sendo os quatro discursos que fazem laço social.
Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2000.