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Eu não falei?

From: Flávio Eustáquio Bertelli - febertelli@pib.com.br - Brasil

 

Em todo o ano de 2001 a Argentina foi assunto predominante na mídia brasileira. Analistas econômicos e comentaristas políticos puderam fazer exercícios de imaginação pura, sempre amparados numa possível realidade calcada nos fatos.

O grau de incerteza chegou ao tamanho do puro imaginário, até que a realidade emergiu, abrupta, descontrolada e descolada dos cenaristas de plantão. Foi preciso entrar num jogo, numa aposta, onde o resultado era previsto, não fosse por outros motivos, porque os dados estavam viciados desde o começo da aventura da paridade cambial e da desnacionalização selvagem de todo o sistema produtivo argentino.

Quase todos sabiam, mas todos os que sabiam procuraram esconder a possibilidade de acontecer o contrário. Economistas, analistas financeiros e políticos, na sua grande maioria, óbviamente, empregados dos bancos e empresas estrangeiras, de lá e de cá.

Economistas da nova ordem, onde só existem planilhas de uma economia triunfalista, onipotente, e analistas que nada analisam senão aquilo que está de acordo com seus padrões - ou patrões? - junto aos comentaristas da mídia que só comentam em cima de "releases"e boletins vindos de única fonte, eis os adivinhos da sorte dos dados.

O pensamento hege/mônico costuma anunciar aos quatro ventos estarmos na era da diversidade, das parcerias, onde um novo homem ( sic) surge, cooperador, prático. Diz até mesmo que nunca houve tantos voluntários do bem dispostos a disseminá-lo. O trágico e o dramático é que os homens de bem costumam acreditar em cada coisa....

Pois a partir da reação da população argentina, os mesmos formuladores, os mesmo arautos daquela experiência, andam desdizendo tudo o que disseram alhures. Deitaram falação sobre o agora (!) visível desmonte de um país cujo principal "mérito" foi exatamente tirar nota dez nos deveres de casa passados pelos senhores da nova economia, do novo Império.

Recentemente, ao abrir os jornais, as revistas e as publicações especializadas em finanças e economia, ao assistir os colunistas de TV, ao visitar os portais de notícias da Internet, não há um só dia onde tais doutores não estejam a dizer que sabiam que isto iria acontecer, que até alertaram sobre os novos rumos a serem seguidos, mencionando correspondências até então sigilosas destinadas aos governantes argentinos, enfim tinham certeza, todos, de que o "crack" iria acontecer..

Tantos anos de desprezo pela condição humana, tantos empréstimos salvadores, o "courrency board" (nome charmoso para o assassinato da moeda de uma Nação), corte de despesas, sempre em prejuízo dos que vivem de salários ou proventos, diminuição do "déficit" público com aumento da dívida externa, ajuda imoral aos negócios privados dos grandes conglomerados, privatização açodada e destruidora, tudo isto se reduzindo a um só problema, é claro, dos argentinos: populismo.

Os dicionários, felizmente, ainda trazem a palavra cinismo , única sinonímia cabível em tais ações e comportamentos.

À indignação, primeiro sentimento que surge diante das leituras ou de imagens de tais demonstrações, deve-se seguir procurando analisar para compreender o que move as pessoas em atos de tal exuberância perversa.

A ideologia consegue desempenhar um papel "hegemônico" quando investe nos elementos decisivos, mas em si neutros, de um dado campo ideológico. É neste sentido que podemos dizer q ue o fascismo confirma "in totum" o esquema marxista da repetição. Haverá sempre um caráter de disfarce no apresentado como novo. Um disfarce funciona como farsa. Concordando com Marcuse, a farsa é mais terrível do que a tragédia a que ela sucede.

Num suposto jogo de representação, Napoleão III, personagem ao qual Marx se referiu no Manifesto Comunista, continuou a desempenhar um papel de neurótico obsessivo tentando representar todo mundo, ou seja, as classes, as camadas, os camponeses, a burguesia, até o lúmpen. Ora, para contentar a todos, endividou-se. ( ou se endividou...). Hitler já falou como um psicótico, sem mediação simbólica representativa, de uma lugar sem furo, inabalável, que não se deixava endividar.

Tal como no fascismo, o político, hoje, se apresenta como algo esteticizado, despsicologizado , Tal despsicologização pode ser comparada a um momento psicótico, que Lacan sublinha como mérito de Clérambault: o fenômeno psicótico tem caráter ideativamente neutro, o sujeito se vê confrontado com uma cadeia significante inerte, não dialetizada, onde falta o ponto de basta; ele não capta o sujeito de modo performativo.

Ora, parece-me eficaz juntar Marx, Benjamin, Adorno, Freud e Lacan, para acessar o paradigma fascista do um só, do naturalmente certo, daquilo que não é perturbado pelo furo, muito menos pela castração. Onde não há espaço para existir uma tensão que possa dialetizar um relação na prática, fica o supereu, reinando sozinho, e onde o supereu reina, o sujeito se avassala.

Peter Sloterdijik, em seu "Crítica da razão cínica" defende tese de que a ideologia estaria funcionando cada vez mais de modo menos ingênuo. Uma razão cínica não teria mais uma certa dose de ingenuidade, contida na frase de Marx, "disso eles não sabem, mas o fazem". Sua nova versão seria "eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem".

Seria o mesmo que dizer: sei que o modelo que estamos impondo não é único, existem outras formas de fazer, mas não admitimos que vocês façam acordo com seus interesses e escolhas. Se houver êrro, só EU posso errar. Diante desta função egóica, cabem somente o assujeitamento, a capitulação.

A sabedoria cínica funda-se numa "negação da negação" pervertida. A transgressão nunca pode ser alçada à condição de um princípio ético, porque para a postura cínica é insuportável ver transgredir a lei francamente. Um cínico vive para legitimar a discordância entre os princípios proclamados e a sua prática. Fausto e D. Juan, exemplos dos heróis modernos , firmam um pacto com o diabo, vivendo além do bem e do mal e são, portanto, punidos com muita severidade, até com crueldade, de modo desproporcional a seus delitos.

É preciso, entretanto, verificar onde estaria a ilusão, a fantasia ideológica que "estrutura" a realidade social. A ideologia não é simplesmente um constructo imaginário que vá dissimular ou embelezar a realidade social. Enquanto sintoma, ela vai ficar no lado do saber. A fantasia ideológica funciona, entretanto, como uma ilusão, um erro, que estrutura a própria realidade, aquela que determina nosso fazer e nossa atividade.

Somente depois disto é que a apreensão da fórmula de Sloterdjk, "eles sabem perfeitamente o que fazem, e, no entanto, o fazem" fica dentro da lógica em que estamos navegando. O paradoxo da posição cínica só fica visível quando a ilusão atua na própria realidade. Portanto, nem a frase primeira de Marx, nem o aditivo de Sloterdjik. Numa síntese, eles sabem muito bem que, em sua atividade real, pautam-se por uma ilusão, mas eles, mesmo assim, continuam a fazê-lo.

Portanto, voltando ao caso em pauta, eles sabiam que estavam defendendo interesses estritamente privados, de poucos, em detrimento de muitos, do público. Eles sabem que os interesses particulares desta exploração estarão sobrepostos aos interesses públicos da Argentina, do Brasil, ou qualquer outro conjunto de pessoas que se constituem como uma Nação, mas dissimulam tais interesses e continuam a se pautar por eles.

O povo, na sua reação anárquica, no enfrentamento do assujeitamento pela condição de rebeldia, na subversão da negação para uma condição de superação de algo marcado pela prática de um Outro perverso, deu um ponto de basta.

Mas o perverso continua em suas práticas sádicas, não suporta que um Outro lhe diga do seu sofrimento porque tem ouvidos moucos, só não são surdos para seu próprio gozo . Nada será escutado, tudo será falado.

Resta-lhe então gritar para quem o enfrenta tentando desmascará-lo como farsante: EU NÃO FALEI?

 

* Psicanalista e sociólogo)

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